sábado, 22 de junho de 2013

quinta-feira, 16 de maio de 2013

Reminiscências de Sylwia, a Sala Suicida


Me chamo Sylwia. O sobrenome não importa, nunca importou e não vai ser agora que vai importar. Costumava me identificar, antigamente, como "Sala Suicida". O apelido não era apenas uma apologia, era um desejo, que depois se tornou uma decisão e hoje é apenas um pesado fardo que carrego junto com uma promessa muda que precisei fazer; eu prometi que iria viver.
Há alguns anos conheci um garoto que se chamava Dominik. Dominik Santorski. Por alguma razão, na realidade onde ele vivia antes de me conhecer, sobrenomes eram uma coisa que importava e muito. Dominik me mostrou um lado diferente da vida, um lado onde ainda havia esperança de melhora. Dominik me tirou da escuridão em que eu me encontrava. E hoje, Dominik está morto. Alguns dizem que por minha causa, eu acredito que sim e eu não me orgulho disso. Mas às vezes também, gosto de pensar que eu fui a sua coragem. Ele não era uma pessoa feliz, eu não sou também, quando nós dois nos encontramos, as nossas infelicidades fundiram-se no que eu consegui até hoje chegar mais perto de um relacionamento. 
Antes de conhecer o Dominik, três anos antes eu resolvi que não precisaria mais mostrar a minha cara ao mundo. Meus pais tentaram de toda a forma me tirar de lá, durante umas duas semanas, mas depois, com o tempo eles apenas acostumaram-se ou conformaram-se com a ideia de que eu não iria sair de lá. E o que mais eles poderiam fazer por mim? Me bater? Me matar? Seria até melhor, era tudo que eu esperava que me acontecesse naquela época. Eu tinha um computador, eu não precisava de outra coisa. Tudo o que me era necessário, eu podia encontrar dentro de mim mesma, era isso que eu repetia na minha cabeça constantemente, porém eu estava tão vazia que tudo que eu encontrava lá dentro era um desejo constante de abandonar esse mundo. Esse mundo sujo, sem amor, sem respeito. Esse ar sujo que me sufocava a cada segundo. 
De certa forma, o que eu queria era escapar. Dominik me deu isso.
Eu via nele um espelho até muito fiel do que eu fui um dia, eu tive uma vida antes de decidir que o meu quarto seria o único espaço do mundo onde eu estaria realmente segura e que eu mesma seria a melhor companhia que poderia ter. A escola foi um inferno no meu tempo, eu não suportava as pessoas lá. Os sobrenomes que importavam, os carros que importavam ainda mais. A aparência das garotas, todas iguais. Os bailes, os garotos, as garotas, as notas. Tudo naquela realidade me deixava absolutamente enjoada. A minha própria família me deixava enjoada. 
Às vezes a gente acerta um ponto na vida que pouca gente conhece, somos pessoas especiais, pessoas que possuem a habilidade de acertar esse ponto e perceber que a vida não passa de podridão e hipocrisia. A maioria das pessoas não acerta esse ponto porque se conforma, mas eu... Eu nunca me conformei. Eu ainda penso em suicídio, a Sala Suicida ainda vive em mim, ela nunca vai deixar de estar lá. Mas eu não posso morrer. Eu não posso morrer, porque Dominik queria viver. E Dominik morreu, a única coisa decente que eu posso fazer pra dizer que a minha vida teve algum sentido é viver, viver por ele. Nos chamamos hoje, eu e algumas outras pessoas que antigamente comandavam a Sala do Suicídio comigo de "Sobreviventes do Suicídio". Para eles é uma piada, eles encontraram a graça da vida, encontraram razões para não querer mais morrer. Eu continuo esperando silenciosamente o meu momento, eu apenas não posso acelerá-lo. Eu sei que Dominik entenderia, ele sempre entendeu.
Tem dias que é insuportável pensar nele, eu ainda mantenho a minha conta na Sala do Suicídio, eu entro lá, caminho pela nossa árvore de fogo, a que ele fez especialmente para mim. Gosto de fazer isso à noite, porque no céu tem uma porção de estrelas, a paisagem também havia sido escolhida por ele. Eu ainda lembro quando ele sumiu, ainda lembro a raiva que eu senti por ele não ter atendido ao meu último pedido, a raiva que senti quando não o encontrei no bar. Eu lembro tudo que eu queria lhe dizer quando ele aparecesse novamente, mas os dias foram passando e eu não tinha notícias. E eu não entendia, mas eu não podia morrer antes de falar uma última vez com ele. Então ele apareceu, da forma como nós nos encontrávamos sempre, no jogo. Todos estavam lá, todas as pessoas que nós considerávamos como nossa família. Porém, não era ele, ele estava diferente.
Eu me chamo Beata Santorska. Sou a mãe do Dominik. Aquelas palavras nunca saíram da minha cabeça. Mas eu esperava que ela dissesse apenas que o Dominik havia fugido de casa ou que ela desejasse me dar uma bronca, esperava que ele tivesse sido descoberto. Mas não, não era nada disso. A mulher me agradeceu e depois, chorando, me disse as únicas palavras que eu jamais desejei ouvir na minha vida e muito menos no fim dela. O Dominik está morto. Ele cometeu suicídio há algum tempo. 
O insuportável é pensar que aquilo foi minha culpa. Eu o fiz conseguir os comprimidos, eu quis que ele me encontrasse naquele bar. Mas eu não sei porque ele esperou que eu estivesse lá três dias depois do que combinamos. Bom, eu também havia perdido a noção do tempo quando me isolei, talvez ele tivesse alguma esperança até o momento.
Eu sei que eu não fui a culpada pela morte dele, não sou assassina e eu sempre disse a ele que ele deveria viver. Era eu quem queria morrer, era eu quem deveria estar morta. Porém, às vezes eu penso novamente e a única coisa que eu gostaria hoje, não é a morte, a única coisa que eu gostaria hoje era ter encontrado o Dominik naquela noite, dançado com ele, abraçado, beijado e nunca ter deixado ele ir. Às vezes me passa pela cabeça que se nós tivéssemos nos encontrado, eu poderia tê-lo salvo, da mesma forma como ele me salvou. 
Hoje eu vivo, eu vivo por Dominik. A minha vida é emprestada. Eu tento não ficar no quarto o tempo todo, mais. O estranho disso tudo, é porque o meu quarto é o lugar onde eu mais lembro do Dominik, mesmo sabendo que ele nunca esteve lá. Mas aí eu penso melhor e ele esteve. Ele esteve comigo por muitas vezes lá, ele até dormiu lá comigo. 
Eu não acredito em destino ou nessas coisas que as pessoas gostam de usar para justificar atos e consequências, mas de vez em quando, tento me enganar dizendo que o que aconteceu, apenas aconteceu porque assim deveria ter sido, que aconteceu como estava para acontecer. 
Um pouco de mim, e não me considero nenhum monstro por pensar isso, eu o conhecia melhor do que qualquer outra pessoa, para poder afirmar, mas esse pouco de mim às vezes acredita que Dominik não estaria feliz se tivesse ficado. Aqueles porcos acabaram com a vida dele na época do colégio. Os mesmos porcos que também acabaram com a minha. Os mesmos, porque para mim, as pessoas lá fora, na realidade, elas são todas iguais, todas podres por dentro. Por mais que não sejam as mesmas pessoas, elas são todas iguais. 
Dominik e eu éramos especiais, porque éramos diferentes. Eu ainda sou, mas vejo a mim mesma depois de tudo aquilo que aconteceu, apenas como um eco, uma sombra. O que eu fui, ficou lá. O que eu fui, morreu junto com ele. Estou aqui apenas cumprindo uma promessa que eu nunca fiz, mas me sinto obrigada a não quebrar. As poucas pessoas que partilharam conosco a Sala do Suicídio, elas eram diferentes também, eram todas especiais. Elas se curaram, algumas, acredito eu, hoje passam absolutamente despercebidas no meio dos outros, são sombras como eu e ninguém imagina que um dia elas quiseram acabar com as próprias vidas. Elas ainda não pertencem a este mundo, eu também não pertenço.
A espera é cruel, antes eu me agarrava na esperança que eu tinha de encontrar alguém que pudesse me levar embora. Às vezes eu também me permito sentir raiva do Dominik, eu penso que ele foi egoísta, que ele tinha que ao menos ter me levado junto com ele. Mas eu me sinto culpada quando começo a pensar desse modo. Acho que a única coisa que eu queria de verdade era ter ficado junto dele, era tê-lo encontrado no tempo certo. 
Eu não sei mais quanto tempo eu vou aguentar. Acredito que eu ainda vá acabar quebrando a minha promessa qualquer dia desses, mas por enquanto eu ainda não posso. Ser forte era o que eu sempre tentava colocar na cabeça do Dominik. Eu lembro como eu me senti orgulhosa quando ele enfrentou aqueles porcos da sala dele no colégio. Ele realmente se mostrou um grande herói. No final das contas, era isso mesmo que ele era, um herói. O meu herói em uma armadura brilhante, que salvou a minha vida, que deu a sua própria vida em troca da minha.  E com isso, ser forte é a única coisa que me resta ser.
Eu sou forte por Dominik. E Dominik também foi forte por mim. 
Nós ainda somos a Sala do Suicídio. Eu ainda sou a Sala Suicida.

terça-feira, 14 de maio de 2013

sábado, 11 de maio de 2013

Menina


"Chorando o gelo que você me deu, achando que você já me esqueceu. Não sei se foi você ou se fui eu, menina. Eu to ficando com uma sensação que eu fui a pista e você, o avião. Você o trem e eu a estação, menina. Eu lembro beijos, blues e poesia. Eu lembro a cara que você fazia, será que eu lembro o que não existia? E eu te procuro até não poder mais, na Internet, nos bares, nos jornais. Trombar você é o que eu quero mais, menina." (Beijos, Blues e Poesia - K-SIS)

Dias comuns: mais um desabafo cotidiano



Eu já nem sei mais quanto tempo faz, eu não conto mais. Eu sei que são dias como esse os que eu sinto mais a sua falta. É, dias comuns, sem nenhuma razão aparente. Sei que não tenho mais controle algum sobre isso, às vezes, como na noite passada, sonho com você. Eu ainda sonho com você e eu acho que ainda espero o dia em que tudo isso vai deixar de ser esse pesadelo infinito e recorrente. Às vezes eu te busco no que ainda restou de você em mim ou comigo, tenho essa pequena caixa de memórias dentro da minha cabeça e fragmentos de você espalhados pelas minhas coisas. Acho que você fez parte de mim por tanto tempo que tudo que é meu tem algo de você, mesmo que você nunca tenha sequer encostado nas minhas coisas. Tem alguns dias, eu tento aproveitar esses dias, são aqueles dias em que eu nem lembro mais como você se parece, seu nome demora a aparecer na minha mente, mas são poucos os dias em que eu te esqueço, eles são raros. Tão raros que eu não consigo me lembrar qual foi a última vez que você não foi a última coisa que eu pensei antes de dormir, a última vez em que você não me visitou nos meus sonhos. Qual foi a última vez que eu não fui atrás de notícias suas, sem você nem saber. Acho que bem lá no fundo, eu ainda tenho um desejo escondido de que você volte, por mais que eu saiba que é sempre a mesma coisa. Às vezes eu penso em você e só me lembro do que nós éramos, não sei se você ainda tem na mente aquilo que a gente já foi um dia, antes de nos tornarmos esse enorme e confuso nada, cheio de fragmentos magoados e sensíveis. Nós éramos algo e estávamos destinadas a ser algo grande, disso eu posso me lembrar perfeitamente. Os nossos caminhos fugiram totalmente do percurso, parece até que deixamos isso inacabado e que não vai ser nem nessa vida que vamos ter a chance de concluir as nossas pendências. Às vezes chego a pensar que um dia a gente ainda vai se ver, que um dia isso ainda vai ter o ponto final, o tal corte final que eu tanto preciso pra deixar de ter o seu fantasma sempre me assombrando. Mas é besteira. E em dias como esse, dias comuns, dias sem nada em especial, eu sinto muito a sua falta. Sinto vontade de ter algo seu me esperando, sinto vontade de poder mostrar algo que vi e que me lembrou você. Em dias tão comuns como este, sinto uma vontade imensa de apenas conversar com você, rir de alguma coisa, contar uma besteira. Em dias como esse, são os que eu fico com mais raiva de mim mesma por querer tanto que você ainda estivesse na minha vida. 

sexta-feira, 10 de maio de 2013

Possibilidades Impossíveis



"Existe essa pergunta muito antiga, mas pouco questionada, ninguém pensa sobre isso, ninguém pensa sobre o destino ou esse capricho sem nome em que somos encaixados. Existem algumas situações em que se costuma dizer que estávamos no lugar certo na hora certa. Mas hoje eu me pergunto: estamos de fato no lugar certo na hora certa ou no lugar errado na hora errada?"

Não era dia do meu plantão naquela noite, em dois anos e meio trabalhando naquele hospital, meus horários sempre seguiram uma disciplina linear, dias de trabalho, folgas, em dois anos e meio, nunca aconteceu aquilo. Eu lembro que naquele dia chovia muito e uma das enfermeiras não apareceu. Ela simplesmente não apareceu, não avisou, nada. Normalmente, teriam pedido para alguma das mais experientes para assumir a sua posição, mas acho que tudo aquilo aconteceu rápido demais para que elas pudessem manter alguma organização. Alguma das minhas colegas de trabalho, isso eu curiosamente não lembro com detalhes, não sei se foi Susie ou Anne, talvez não tenha sido nenhuma das duas, lembro apenas de alguém correndo até mim já com os trajes próprios para que eu pudesse entrar no centro cirúrgico. Eu tinha um pouco de pavor de entrar naquele lugar, eu não gostava, a minha função não era aquela, mas eu não podia simplesmente dizer que não iria e pronto, acima de tudo, lá estava uma pessoa precisando de cuidados.
Era um parto. Eu fiquei um pouco mais aliviada quando soube que era isso, pois eram as cirurgias complicadas que me davam arrepios só de pensar. Um parto, o que tinha de mais em um parto? Era apenas uma vida vindo conhecer o mundo. Eu senti pena pela criança, eu sempre sinto pena quando alguma nova criança nasce, acho que se elas pudessem escolher ou se soubessem como realmente é aqui fora, jamais iriam querer sair. Aliás, elas jamais iriam querer descer.
Eu me troquei o mais rápido que pude, me higienizei e corri para o centro cirúrgico. Eu descobri que a minha função lá não seria nada mais do que acalmar a nova mãe, que estava gritando muito. Eu não era muito boa com essas coisas, mas respirei fundo e tentei colocar em mim a melhor expressão de segurança, apenas para aquela mulher que estava precisando no momento.
Ela estava, de fato, gritando bastante quando cheguei lá. Eu olhei para o rosto da mulher, que na verdade passaria fácil por uma menina, tinha uns traços delicados, apesar de serem firmes. E a sensação de que eu já tinha visto aquele rosto em algum lugar era tão grande que chegava a me incomodar. Eu segurei a mão dela, enquanto tentava estabilizá-la com um pano umedecido em sua testa e rosto, ela apertou tão forte a minha mão que se não estivesse tão fraca, creio que ela teria conseguido quebrar alguns dos meus ossos. Tentei lhe dizer que estava ali, que ela poderia confiar na equipe, mas ela deveria estar sentindo muita dor - e não era pra menos -, mas a verdade é que além do que eu já falava, não tinha muita coisa que eu pudesse dizer para confortá-la. Eu apenas apertei sua mão com força e pensei em cantar para ela, talvez fosse uma boa coisa a se fazer. Comecei apenas a murmurar algo, no início nem eu mesma tinha certeza do que era, mas depois a minha melodia baixinha foi tomando forma, naquele mesmo instante, ela pareceu se acalmar subitamente. Continuei murmurando aquela canção para ela e tentando incentivá-la a se esforçar e empurrar, até que estivesse tudo acabado. Depois de um pouco mais de esforço e de tempo, logo todos pudemos ouvir aquele chorinho confortador.

O brilho nos olhos dela quando recebeu a criança em seus braços - era uma menina - fez o meu próprio coração se aquecer. E eu nem sabia qual era o nome daquela jovem, apenas sentia que lá no fundo ela já havia passado pela minha vida, há muito, muito tempo, mas eu não podia me lembrar. Eu saí da sala de cirurgia antes de todos os meus colegas, não conseguia ficar lá por muito tempo e, como não estava acostumada, era tanto um choque para a mãe receber a filha em seus braços, quanto era para mim ter sido responsável por tranquilizar a paciente.

— x —

"Você fez um ótimo trabalho lá, Al." O próprio Doutor responsável pelo parto veio me congratular, ainda me lembro de ouvi-lo dizer que nunca ninguém havia acalmado uma de suas pacientes tão bem quanto eu havia conseguido. Às vezes, quando me lembro disso, me dá uma pequena pontinha de saudades daquela profissão.

— x —

A minha vida poderia ter seguido um rumo tranquilo, eu havia ajudado um dos médicos mais atenciosos daquele plantão, havia mesmo indiretamente, ajudado a trazer uma vida ao mundo e tudo estava bem. Mas foi o dia seguinte que veio como um absoluto choque, um tapa violento na minha cara, que mesmo invisível deixou marcas que ficaram presas por baixo da minha pele, de um modo que eu nunca pude removê-las.

"Alexia, tem alguém que quer ver você." Dessa frase eu lembro perfeitamente e tanto quanto, me lembro de ter sido dita por Anne. Talvez tenha sido Anne que me arrastou para o centro cirúrgico naquela noite, também.

Eu fui mandada até o quarto da paciente que eu havia acalmado, porque ela gostaria de me agradecer pelo que eu fiz por ela. Curioso mesmo era o fato de ninguém sequer se importar em me dizer o seu nome, mas suponho que eles acreditassem que era a minha obrigação saber.
Quando eu cheguei no quarto, a enfermeira já estava levando o bebê para fora do leito e a mãe estava cobrindo um de seus seios, quando ela me viu entrar, sorriu. Aquele sorriso, por que eu não reconheci antes? Eu poderia ter evitado aquilo.

"Disseram que queria me ver." Eu disse e parei perto da cama, constrangida era a palavra para me descrever naquele momento.
"Senta." Ela deu um tapinha fraco perto de si e eu me sentei na beira da cama. Ela me olhou e pude jurar que ela também sentiu aquilo que eu senti ao vê-la, aquela mesma sensação de reconhecimento. Nos encaramos assim por algum tempo, até que ela quebrasse o silêncio. Posso dizer que ela se incomodou com aquilo. "Eu gostaria de te agradecer por... Erm... Pelo que fez por mim, lá. Sabe..."
"Eu estava apenas fazendo o meu trabalho, você não precisava se--"
"Você cantou algo pra mim, algo que só cantaram uma vez em toda a minha vida... Era como se você soubesse-", ela tossiu, antes de continuar. "Como se você soubesse que aquela era a única música que poderia me acalmar. Deus... O que eu estou dizendo? Eu nem deveria estar pensando nessas coisas..."
"Eu não sei porque eu pensei naquela música, exatamente naquela." Eu estava sendo sincera, até aquele momento, eu realmente não sabia. "Pensei que poderia ajudar... Eu--eu não sei. Senti, senti que poderia servir."
"Era... Yellow. Reconheceria aquele tom em qualquer lugar do mundo. Me diga, qual é o seu nome?"
Eu jamais esqueci aquele momento.
"Al... Alexia."

Os olhos dela cresceram um pouco e ela levou as duas mãos até os lábios, cobrindo-os. Pensei que fosse ter um ataque ali, o que fez eu me levantar muito rápido. Pude perceber que logo depois do choque, lágrimas começaram a descer pelo rosto dela. Nunca resisti ao que uma mulher chorando podia fazer comigo, então no lugar de recuar, eu me voltei para ela e a abracei. Ela me apertou muito forte contra os seus braços, mas soluçava de forma incontrolável, ficou assim por algum tempo até começar a se acalmar e dizer algo que eu não compreendi em meio aos seus soluços.

"Em... Emily." Foi o que ouvi ela dizer, quando nos separamos, as duas mãos dela esfregando os próprios olhos e o rosto e aqueles olhos grandes fixados em mim.

Era ela.

A situação esquisita aqui, foi o fato de nós não termos nos reconhecido, porém ao mesmo tempo, não teria como. Eu estava muito diferente do que ela havia conhecido de mim, nós éramos adolescentes, em nossos 16 anos quando vivemos a nossa história. Eu, porém, nunca esqueci aquela menina. A menina que foi o amor da minha vida. Porém o rosto dela ficou gravado na minha memória de uma maneira ainda mais jovem e pela minha vida, depois que me mudei, sempre via mulheres pela rua que se pareciam com ela, cruzava por aí com elas e abaixava a cabeça, pensando que qualquer uma delas poderia ser ela e que ela não se lembraria de mim. Eu também comecei a chorar, mas até mesmo pela minha profissão, eu conseguia conter isso muito melhor.

Eu não consegui abrir a boca pra dizer nada e nunca vou saber se ela tinha mais alguma coisa para me dizer, eu dei um passo e fiquei na frente dela, coloquei alguns dos seus cabelos atrás de sua orelha e sorri fraquinho, um beijo na testa, foi a única coisa que eu pude deixar nela. A porta do quarto se abriu e entrou por ali um homem loiro, bonito, parecia simpático, mas carregava consigo um semblante preocupado que adquiriu provavelmente ao ver a mulher naquele estado. Eu havia me separado dela antes que ele entrasse no quarto, ele veio direto na direção dela e beijou-lhe a face, a testa, os olhos e a boca, só percebeu que eu estava ali depois de dar toda a atenção que sua mulher merecia.
Nada mais foi dito.

Eu olhei para ela uma última vez, sorri fraco e saí do quarto. Pedi demissão da clínica no mesmo dia, passei pelo berçário, observei a filha de Emily por algum tempo antes de ir embora, dei a volta pelo outro lado do estacionamento quando vi o marido dela vindo na direção onde eu estava e essa foi a última vez que eu soube sobre Emily.
Eu fugi, larguei aquela profissão, mudei de cidade. Quando jovem, havia largado o curso uma vez e depois resolvi voltar, por dois anos e meio exerci aquilo como uma paixão, por mais que não gostasse tanto do que fazia. Mas Emily sempre aparecia em algum ponto da minha vida e eu havia aprendido a correr dela, a correr dos pontos no tempo onde as nossas vidas se cruzavam.

Eu não sei se eu estive no lugar certo na hora exata, ou se não havia momento pior para eu estar presente, naquele dia. Às vezes penso se aquela vida era a vida que nós teríamos formado, eu, ela, uma bela garotinha. Mas depois eu penso melhor, a vida que Emily queria era muito diferente da vida que eu poderia lhe oferecer. Me pergunto todos os dias como estão ela e a menina, mas não me atrevo a procurar notícias, não me atrevo tentar encontrá-las.

Aquela página que eu havia arrancado poderia até voltar algumas vezes, pela caixa de correio ou pelos ventos que a traziam de alguma forma, mas eu não podia ignorar o fato de que era definitivamente uma página arrancada que não poderia ser fixada novamente no meu livro.

A Beautiful Mind



My Own Private Idaho