sábado, 27 de abril de 2013

Paradoxo: O Estranho Conforto da Solidão Acompanhada




Não há nada de muito interessante, nem nada de novo em olhar a chuva pela janela de um apartamento onde eu passei toda a minha infância e adolescência trancado e sozinho. Meus pais saiam cedo para trabalhar e eu não podia descer para o playground e brincar com os garotos da minha idade. Ficava em casa, totalmente sozinho. À noite meus pais chegavam, cansados demais para sentar-se ao pé da minha cama e ler uma história para que eu dormisse, não que eu realmente estivesse interessado na história, lia todos os livros que tinha em casa pra passar o tempo, mas me interessava pela companhia deles, pelo menos na época. Estavam sempre estressados demais também, para que eu pudesse lhes contar que havia aprendido a fritar um ovo sozinho com seis anos de idade, mesmo que isso não fosse assim tão genial. Quando muito eles brigavam comigo por ter deixado a casa uma bagunça ou por quebrar um copo sem intenção. Eu sempre fui muito só, desde pequeno, mas eu não conhecia muita coisa do mundo lá fora, eu acreditava que era assim que as pessoas eram. Todas singulares.


Durante esses anos de solidão criei em torno de mim uma espécie de bloqueio. Eu vim ao mundo para estar sozinho, foi isso que meus pais me ensinaram quando eu era muito, muito jovem. E é isso que eu carrego comigo, é quase como um lema ou um legado de família. Hoje eu moro em uma quitinete de apenas duas peças. Nunca fui apegado a muitas coisas quando criança e isso me acompanhou por toda a adolescência. Tenho hoje 23 anos, mas sinto como se já tivesse vivido uma vida de 83 e ainda não existe algo que eu me sinta apegado. Sendo assim, essa quitinete barata é mais que suficiente, é um teto pra me proteger da chuva e um lugar onde eu posso ficar com quem sempre estive desde que nasci: eu mesmo. Eu me sinto constantemente cansado e eu não faço nada. Fico o dia todo dentro dessa quitinete isolada com meu violão e umas caixas de pizza que duram às vezes mais de três dias, ou o tempo que seja necessário para o termo “perecível” mostre seu significado. Eu nunca me importei muito com comida também, a maioria das coisas que eu compro acabam estragando antes mesmo de eu usar, então eu evito comprar muita coisa. E também nem se eu quisesse comer do bom e do melhor eu poderia. Tenho o que as pessoas costumam chamar de gênio forte, ou ao menos é o que eu já ouvi falarem pelas minhas costas ou mesmo na minha cara algumas vezes. Por essa razão, não é muito fácil encontrar um emprego que dure mais que algumas semanas. 

Eu tenho uma ajuda, claro, mas não sei como deveria me sentir a respeito disso. Esse é o reflexo do que eu me tornei, meramente sei identificar emoções óbvias. As complexas então, eu prefiro não tentar. Mas voltando ao ponto anterior, eu recebo bastante ajuda desse cara, Gabriel. Por alguma razão ele parece gostar da minha presença, mesmo que na maior parte do tempo tudo que eu faça seja o ouvir falar de forma incessante sobre qualquer assunto e balançar a cabeça concordando com tudo o que ele diz. Ele é uma boa pessoa, na verdade. Até eu sou capaz de enxergar isso, porque é realmente transparente a bondade que existe nesse cara. Eu acho que se eu fosse capaz de sentir, provavelmente sentiria algo por ele. Ele parece saber lidar comigo, entretanto, sempre me comunica baixinho momentos em que eu preciso sorrir e agradecer, sempre me avisa quando estou sendo rude ou inconveniente. É bom, eu acho, do pouco que entendo dessas convenções sociais, Gabriel é um bom amigo.

Esse Gabriel, aliás, já está na minha vida há um bom tempo e vem me ajudando desde o dia em que nos vimos pela primeira vez. Por isso às vezes tenho uma sensação de que sou um pouco injusto com ele, quando digo que não quero vê-lo ou fico semanas sem dar notícias. Eu acho que é o que as pessoas chamam de consideração, eu sinto um pouco de cada coisa, mas nenhuma delas é suficiente pra que eu me importe, mas ele não desiste, ele compreende. Ele sempre compreende. Às vezes eu acho até estranho. Eu não teria essa paciência. Aliás, eu não tenho paciência.

Quando o conheci me lembro que foi em um bar, numa noite como qualquer outra. Eu realmente quero dizer “como qualquer outra”, porque o que aconteceu naquela noite não era novidade nas minhas rotinas estranhas. Eu tinha deliberadamente arrumado uma briga com um cara que deveria ter quatro vezes meu tamanho depois de ter exagerado na bebida. Na verdade, eu estava relativamente sóbrio ainda, o suficiente pra saber que eu apanharia, porém, ninguém havia me perguntado se não era aquilo mesmo que eu estava procurando. Desde a minha adolescência eu descobri que a única coisa que eu era capaz de sentir era dor física. Aquilo funcionava, sempre que eu brigava e na maior parte das vezes eu apanhava fosse por escolha ou apenas por não ser páreo para o oponente escolhido, aquilo me enchia de prazer. Às vezes, eu chegava a agradecer na minha cabeça enquanto recebia os golpes de algum valentão, às vezes eu revidava, o prazer era um pouco menor quando era eu o provocador da dor, eu revidava por reflexo, ou apenas por começar a me sentir entediado enquanto estava apanhando. Mas aquela era a única coisa que por vezes me ajudava a lembrar que eu ainda era um ser humano de carne e osso, que eu sangrava como as outras pessoas e que eu podia sentir alguma coisa e que só talvez eu fosse um pouco menos a aberração que eu acreditava ser. Eram os momentos em que eu me sentia vivo de verdade. Eu arrumava as brigas mais ridículas por ai, apenas pra apanhar. Eu mexia com garotas acompanhadas, mesmo não sentindo atração por elas. Eu mexia com caras que obviamente não sentia nada mais que repulsa por bichas magricelas – como eu cansei de ouvir que era com o que eu me parecia. Bom, os comentários só me faziam rir, eu não tinha consciência dessa parte que as pessoas têm, onde uma ofensa é tomada como uma ofensa. Xingamentos eram os meus melhores gatilhos para conseguir o que eu queria: alguém que me fizesse sentir. Eu não acho que meu complexo fosse esse complexo besta e banal dos adolescentes de automutilação, particularmente eu não via qual era a graça em causar a minha própria dor, tentei isso várias vezes e nunca funcionou comigo, eu não senti absolutamente nada. Sentia o prazer vulgar de ter algum dos ossos quebrados por alguém que eu mal ou sequer conhecia, mas não conseguia sentir sequer um filete de felicidade ao provocar minha própria dor.

Por esse motivo, eu poderia ter ficado extremamente puto com o tal Gabriel quando ele tirou o cara de cima de mim naquele bar, pois aquela era a minha terapia e eu não precisava da ajuda de ninguém. Mas por alguma razão me senti agradecido. A minha cara, eu lembro bem, já estava coberta de sangue e eu sentia aquele gosto peculiar e viscoso na boca. Meus ossos, aquele cara estava a um passo de triturar meus ossos com as próprias mãos. Eu agradeci o até então estranho que havia me salvado e fui saindo do bar pra não causar mais confusão, mas ele me seguiu até o lado de fora do estabelecimento.


“Ei, ei. Espere um instante!” Foi o que ele disse, segurando meu braço no momento em que me alcançou. Era estranho. Digo, raramente alguém encostava as mãos em mim sem a intenção de me bater. Na minha vida, as coisas funcionavam apenas de duas formas: alguém interagia comigo para brigar ou não interagia de forma alguma.

De qualquer forma, levantei os olhos para ele e tentei forçar um sorriso, porém não tive muito sucesso, todo o meu rosto doía. E o curioso é que toda a situação acabou levando embora o meu momento de glória, o momento onde eu supostamente deveria sentir algo.

“Erm… Obrigado pelo que você fez lá dentro.” Disse logo, talvez assim poderia cortar logo a conversa e ir pra casa. Eu acho que era disso que ele estava atrás, não era? De um “muito obrigado” apropriado e então a cortesia estaria consumada, ele poderia ir pra casa com uma vitória pendurada no peito como uma estrela de gratificação e contar pra quem o estivesse esperando tarde da noite que naquela noite tão singular, ele estava passando por um bar e salvou a vida de um cara que provavelmente ia apanhar até a morte. Um viadinho indefeso, que normalmente era o modo como as pessoas me enxergavam.

Porém ele estendeu a mão, eu fiquei pensando quanto tempo mais eu teria que jogar esse jogo de sociabilidade, já estava me vendo sem munições e aquilo me deixou levemente confuso por um momento, mas por sorte meu cérebro funcionava até bem rápido e ainda tinha um pouco da adrenalina da situação bombeando o meu sangue mais depressa, isso me ajudava a pensar melhor e mais rápido também. Estende a minha de volta e apertei a mão dele por um momento bem curto. Provavelmente mais curto que se pede a regra, mas mais uma vez, eu não tinha a mínima noção dessas regras.


“Gabriel.” Ele disse, sorrindo. Eu não tentei sorrir de novo, de qualquer forma, ele sabia que eu estava com os músculos da cara fodidos demais pra conseguir sorrir de volta. Foi aí que eu percebi, desde esse primeiro momento, que Gabriel era uma pessoa que compreendia o mundo de uma forma bem diferente das outras pessoas. E com o tempo, ter ele por perto sempre falando sem parar, só me fez ter mais certeza disso. Curioso é o fato de que até hoje eu não me incomodo, mesmo quando eu não estou com a mínima vontade de vê-lo, mas se ele aparece, eu não ligo. Às vezes fico meio frustrado comigo mesmo, pois criei um vínculo difícil de quebrar com esse cara, se eu não quiser mais ele por perto, precisaria pagar todo o dinheiro que eu devo e eu não teria condições, nem agora e nem em 20 anos, o cara praticamente salva a minha vida toda a semana, eu não podia simplesmente me livrar dele. Fico pensando se é assim que o mundo funciona para as pessoas normais, se você encontra alguém por acaso em alguma situação bizarra e de repente, sem nem perceber, você vendeu a sua alma a essa pessoa ou acorrentou-se miseravelmente a ela e não tem nem a remota chance de sair. Era uma armadilha perigosa deixar alguém salvar a sua vida ou, na menor das hipóteses, de ajudar de qualquer forma que seja.


Eu lhe disse meu nome naquela noite e nem pensei em talvez lhe dar um nome falso pra que ele não pudesse mais me achar. Ele caminhou ao meu lado, enquanto eu fazia o caminho silencioso em direção a minha casa, eu apenas olhei pro lado e ele percebeu, como sempre e logo tratou de explicar que era melhor que ele me acompanhasse até em casa, porque aquele cara do bar poderia estar me seguindo e esperando que eu ficasse sozinho pra terminar o que havia começado. Gabriel era bem sagaz, isso eu gostava, eu nunca precisei de mais que um olhar de reprovação para que ele entendesse que estava me entediando com um assunto, ou me irritando ou falando demais. Às vezes ele apenas sentava ao meu lado na minha casa e assistia qualquer porcaria que eu estivesse vendo na televisão e não falava por algumas horas, ele não conseguia ficar muito tempo quieto, mas se esforçava quando via que eu queria um pouco de silêncio. Ele me respeitava bastante, acima de tudo, mas todos os dias até hoje eu ainda me pergunto porque ele insiste em ficar na minha casa por horas assistindo algum dos meus filmes bizarros que só eu gosto ao invés de estar com alguma garota ou qualquer outro amigo que queira conversar com ele de verdade. Às vezes eu até penso que Gabriel talvez seja como eu, uma pessoa sozinha, mas chego a rir da minha cara ao cogitar essa hipótese, simplesmente porque pessoas como o Gabriel nunca ficam sozinhas. Mas nunca me ocorreu perguntar a ele sobre isso, talvez porque eu não queira ouvir um discurso de horas sobre a vida dele.

Na realidade, em meu estado normal eu diria que tanto faria se o cara me encontrasse ou não. O máximo que ele iria fazer seria me bater um pouco mais ou talvez ele fosse psicopata o suficiente para então me matar a sangue frio. Mas esse era o ponto máximo que ele poderia alcançar: me matar e despachar meu corpo em qualquer rio mais próximo. Seria um fim até bem peculiar para alguém que nunca fez diferença alguma na vida de ninguém, mas talvez eu estivesse apenas fantasiando demais. Apesar de todas essas coisas terem passado pela minha cabeça e eu realmente poderia ter dito, pois do que conheço de Gabriel hoje, ele teria rido, mas eu apenas dei de ombros – e senti todos os meus ossos protestando esse gesto – e simplesmente permiti que ele caminhasse comigo. Naquela noite talvez eu tenha realmente feito o papel de bicha assustada, que foi o apelido preferido dos meus colegas de classe no colegial. Porém naquela época eu não tinha medo, eu sabia que nenhum deles me mataria, todos tinham as asas dos pais pesando ainda sobre si, ninguém faria mais do que caçar uma briguinha com algum colega, apenas pra se auto afirmar. Era uma troca de favores isso que eu fazia no colegial, eles me davam o que sentir e eu lhes dava a estrela dourada que imaginei pendurada no peito de Gabriel quando ele me ajudou no bar. A gratificação. Porém naquela época, a gratificação dos garotos jovens pendia sempre no que era forte, no que era valente. Naqueles que batiam nos alunos mais fracos. E eu lembro que as garotas adoravam aquilo, corriam atrás desses meninos e faziam filas para que eles as convidassem para o baile ou apenas para transar no carro depois de um cinema. Tudo aquilo passava por mim como uma sombra do que eu jamais iria me tornar e às vezes eu até me sentia um pouco melhor. Ser sozinho não me atormentava e nem me incomodava, estar sozinho era mil vezes melhor do que estar acompanhado por aquele bando de idiotas.

Mas bem no fundo, mesmo quando eu era criança ou na minha adolescência, eu ainda desejava conhecer uma pessoa que pudesse entender o que eu sentia ou tudo aquilo que eu não sentia, alguém que pudesse conviver comigo, talvez até alguém que me mostrasse um mundo diferente daquele que eu conhecia. Quando meu pai morreu, eu saí de casa uma semana depois, já era insuportável conviver com os meus pais, mas eu de vez em quando conseguia me sentir quase normal perto do meu pai, ele parecia gostar um pouco mais de mim, ou me entender melhor. Era a minha mãe que eu não conseguia suportar sequer a presença. A voz dela me causava ojeriza. E eu jamais teria paciência pra consolar alguém, ainda mais esse alguém sendo a minha mãe. Eu saí de casa deixando apenas um bilhete para ela, deixei o endereço de onde estaria apenas para que ela não colocasse a polícia atrás de mim.

Minha mãe, é claro, nunca me procurou, não ligou, eu não sei mais nada dela. Ela pode até estar morta e eu nunca vou saber. Gabriel me perguntou uma vez sobre os meus pais, mas a única coisa que eu contei foi essa mesma história, que saí de casa pouco tempo depois que o meu pai morreu e que não sabia mais dela desde então. Gabriel acha que eu deveria procura-la e tentar acertar os ponteiros com ela. Às vezes ele tem essa mania desagradável de tentar me analisar e sinto como se ele estivesse o tempo todo procurando uma chave em mim, pra abrir alguma fechadura, como se houvesse uma e como se ela pudesse ser aberta. Na realidade, até me surpreendo, porque por mais quieto que eu fique, Gabriel até consegue às vezes me interessar sobre um assunto ou outro, ou ele começa com uma coisa e quando vejo ele já está fazendo perguntas e eu me pego respondendo. Quando eu percebo, porém, volto ao meu estado normal e vejo ele fazer aquela cara que ele faz e aí ele diz algo como “Droga, eu estava tão perto!” e então ele se senta pra assistir comigo o que quer que seja ou vai pro telefone pedir uma pizza. Ele aprendeu rápido que não precisava me perguntar sobre qual sabor pedir, porque eu comia qualquer coisa. Visto que eu não me importava, ele sempre pedia os sabores que mais lhe apeteciam. Sempre algo com bastante pimenta, isso eu posso garantir. Às vezes, mas isso era bem raro, eu pedia para que ele pedisse algo que não fosse tão picante, por causa do meu estômago. Os meus péssimos hábitos alimentares vez ou outra me sabotavam e aí eu via que era hora de me importar um pouco, ou me importar mesmo não me importando.

Por muito tempo, eu venho seguindo desse modo, Gabriel vem até a minha casa, vai embora, ele se tornou parte da minha vida, sutilmente, sem que eu percebesse. Aos poucos, eu fui parando de me importar, comecei a falar, mesmo que pouco, na verdade, era muito menos que ele, mas já era alguma coisa. Aprendi um pouco sobre ele, também. Gabriel nasceu em outro país, se não me engano, no Brasil ou algo assim. Se mudou para Manhattan quando criança, sua mãe desapareceu sem deixar vestígios, o pai não quis o fardo, o mandou para os Estados Unidos sem piedade. Gabriel morou com sua avó por algum tempo, mas ela morreu e ele ficou com a maioria dos bens dela, disse que ela o deixou com uma boa herança, pela gratidão de ter estado com ela por tanto tempo. Ele pensou em entrar para universidade, disse que queria Psicologia, nesse ponto, até achei bem compreensível então o motivo dele sempre entender as coisas e de ter um jeito especial de me fazer falar, sempre com muita paciência. Entendi também que o motivo dele desperdiçar tanto tempo comigo, era porque ele entendia o que era não ter ninguém. Ele teve a avó dele, na verdade. Um pouco mais do que eu tive, pois literalmente eu não tinha ninguém. Acho que por isso ele conseguiu desenvolver uma personalidade mais doce, eu era arisco, ele me descreveu uma vez como “gato assustado”, na época eu girei os olhos e achei a comparação patética, mas no fundo ele tinha razão. Ele quase sempre tinha razão ou estava certo nas coisas que dizia. Mas o ponto-comum entre nós é que ambos sabemos perfeitamente o que é a solidão. Eu não me permito sentir a companhia de alguém, eu nunca tive a companhia de alguém, mas quando Gabriel estava perto de mim, eu tão pouco sentia necessidade de buscar uma briga. Eu posso não sentir nada, mas esse nada, o silêncio vazio que paira com uma frequência talvez incomum em padrões de normalidade entre nós, por mais que a televisão esteja ligada não é nem de longe desconfortável. Não é desconfortável ouvir Gabriel falar sem parar, ele não se sente mal quando eu mando ele ficar quieto, porque ele me entende. Eu pensava que eu tinha nascido pra ficar só e de fato, eu estava sozinho. Mas eu encontrei uma solidão compatível com a minha e eu não precisava fingir. Eu podia ser.

Eu nunca consegui me interessar pela vista da janela, porque isso me lembrava a minha infância solitária e me lembrava o apartamento dos meus pais. Gabriel me sempre me pede com educação para mudar de canal ou desistir de algum filme, quando o tema principal envolve hospitais ou era algo sobre médicos. Acho que o pai dele era um médico, mas eu nunca cheguei a perguntar. Eu nunca precisei, eu apenas comecei a compreender um pouco as coisas da mesma forma que ele fazia. Pude compreender um pouco melhor sobre essas convenções sociais quando Gabriel apareceu, ele me ensinava essas coisas e ria, como se fosse um absurdo um ser humano não saber quando precisa agradecer e quando é o momento de sorrir ou demonstrar tristeza. Eu ainda não sabia e talvez isso nunca saia naturalmente, mas consigo me lembrar de algumas vezes em que eu ri genuinamente de alguma besteira que Gabriel disse. Compartilhamos também alguns gostos por certos filmes e séries, às vezes eu escolho ficar no meu canto quieto lendo um livro que Gabriel traz, ele conseguiu despertar meu interesse com a paciência que tinha, demorou muito tempo, mas ele encontrou livros que eu sinto vontade de ler até o final. Ele tinha paciência e vontade de me ajudar, uma paciência que meus pais nunca tiveram. Gabriel tira o meu tédio, isso é quase como sentir alguma coisa.

Eu não conheço os sentimentos, eu não sei o que as pessoas sentem e para mim, compaixão, amor, amizade, essas palavras não me dizem nada. Não sei o que Gabriel seria para mim se eu fosse uma pessoa normal, se seria um irmão, um amigo, um grande camarada ou um namorado. Eu não sentia essas coisas, tão pouco, eu não sentia desejo, atração ou calafrios desconhecidos. Gabriel não se importava, essa era uma parte que eu sabia pouco sobre ele, também. Eu não sei se ele sai e transa com as pessoas por aí, eu não sei se ele é hétero ou se é viado. Eu não sei o que eu seria, também. Se eu fosse uma pessoa normal, talvez ele fosse meu namorado. Mas ser essa pessoa solitária que eu sou e ter encontrado essa pessoa solitária que era Gabriel, nos tornava simplesmente William e Gabriel. Éramos indivíduos singulares, jamais pertenceríamos a um par, não existia uma metade para nos completar. Mas minha solidão acompanhava a solidão dele de maneira curiosa e de maneira ainda mais curiosa, eu não me importava. Não o não me importar típico de William, que não estava nem aí pra nada. Eu só não ligava, mas quando ele estava ali na minha quitinete velha e fodida, eu apenas não sentia a vontade e a necessidade de sair por aí procurando brigas pra sentir alguma coisa.

É que sobre estar só era a única coisa que entendia bem. E ele também. A solidão se tornava confortável quando acompanhada.

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