domingo, 14 de agosto de 2011

O meu coração é...

Meu coração é um álbum de retratos tão antigos que suas faces mal se adivinham. Roídas de traça, amareladas de tempo, faces desfeitas, imóveis, cristalizadas em poses rígidas para o fotógrafo invisível. Este apertava os olhos quando sorria. Aquela tinha um jeito peculiar de inclinar a cabeça. Eu viro as folhas, o pó resta nos dedos, o vento sopra.
Meu coração é um mendigo mais faminto da rua mais miserável.
Meu coração é um ideograma desenhado a tinta lavável em papel de seda onde caiu uma gota d’água. Olhado assim, de cima, pode ser Wu Wang, a Inocência. Mas tão manchado que talvez seja Ming I, o Obscurecimento da Luz. Ou qualquer um, ou qualquer outro: indecifrável.
Meu coração não tem forma, apenas som. Um noturno de Chopin (será o número 5?) em que Jim Morrison colocou uma letra falando em morte, desejo e desamparo, gravado por uma banda punk. Couro negro, prego e piano.
Meu coração é um bordel gótico em cujos quartos prostituem-se ninfetas decaídas, cafetões sensuais, deusas lésbicas, anões tarados, michês baratos, centauros gays e virgens loucas de todos os sexos.
Meu coração é um traço seco. Vertical, pós-moderno, coloridíssimo de neon, gravado em fundo preto. Puro artifício, definitivo.
Meu coração é um entardecer de verão, numa cidadezinha à beira-mar. A brisa sopra, saiu a primeira estrela. Há moças na janela, rapazes pela praça, tules violetas sobre os montes onde o sol se pôs. A lua cheia brotou do mar. Os apaixonados suspiram. E se apaixonam ainda mais.
Meu coração é um anjo de pedra de asa quebrada.
Meu coração é um bar de uma única mesa, debruçado sobre a qual um único bêbado bebe um único copo de bourbon, contemplado por um único garçom. Ao fundo, Tom Waits geme um único verso arranhado. Rouco, louco.
Meu coração é um sorvete colorido de todas as cores, é saboroso de todos os sabores. Quem dele provar, será feliz para sempre.
Meu coração é uma sala inglesa com paredes cobertas por papel de florzinhas miúdas. Lareira acesa, poltronas fundas, macias, quadros com gramados verdes e casas pacíficas cobertas de hera. Sobre a renda branca da toalha de mesa, o chá repousa em porcelana da China. No livro aberto ao lado, alguém sublinhou um verso de Sylvia Plath: “Im too pure for you or anyone”. Não há ninguém nessa sala de janelas fechadas.
Meu coração é um filme noir projetado num cinema de quinta categoria. A platéia joga pipoca na tela e vaia a história cheia de clichês.
Meu coração é um deserto nuclear varrido por ventos radiativos.
Meu coração é um cálice de cristal puríssimo transbordante de licor de strega. Flambado, dourado. Pode-se ter visões, anunciações, pressentimentos, ver rostos e paisagens dançando nessa chama azul de ouro.
Meu coração é o laboratório de um cientista louco varrido, criando sem parar Frankensteins monstruosos que sempre acabam destruindo tudo.
Meu coração é uma planta carnívora morta de fome.
Meu coração é uma velha carpideira portuguesa, coberta de preto, cantando um fado lento e cheia de gemidos – ai de mim! ai, ai de mim!
Meu coração é um poço de mel, no centro de um jardim encantado, alimentando beija-flores que, depois de prová-lo, transformam-se magicamente em cavalos brancos alados que voam para longe, em direção à estrela Veja. Levam junto quem me ama, me levam junto também.
Faquir involuntário, cascata de champanha, púrpura rosa do Cairo, sapato de sola furada, verso de Mário Quintana, vitrina vazia, navalha afiada, figo maduro, papel crepom, cão uivando pra lua, ruína, simulacro, varinha de incenso. Acesa, aceso – vasto, vivo: meu coração teu.

Caio Fernando Abreu

domingo, 7 de agosto de 2011

And there she goes...

Lá está ela, mais uma vez. Não sei, não vou saber, não dá pra entender como ela não se cansa disso. Sabe que tudo acontece como um jogo, se é de azar ou de sorte, não dá pra prever. Ou melhor, até se pode prever, mas ela dispensa.
Acredito que essa moça, no fundo gosta dessas coisas. De se apaixonar, de se jogar num rio onde ela não sabe se consegue nadar. Ela não desiste e leva bóias. E se ela se afogar, se recupera.
Estranho e que ela já apanhou demais da vida. Essa moça tem relacionamentos estranhos, acho que ela está condicionada a ser uma pessoa substituta. E quem não é?
A gente sempre acha que é especial na vida de alguém, mas o que te garante que você não está somente servindo pra tapar buracos, servindo de curativo pras feridas antigas?
A moça…ela muito amou, ama, amará, e muito se machuca também. Porque amar também é isso, não? Dar o seu melhor pra curar outra pessoa de todos os golpes, até que ela fique bem e te deixe pra trás, fraco e sangrando. Daí você espera por alguém que venha te curar.
Às vezes esse alguém aparece, outras vezes, não. E pra ela? Por quem ela espera?
E assim, aos poucos, ela se esquece dos socos, pontapés, golpes baixos que a vida lhe deu, lhe dará.
A moça – que não era Capitu, mas também têm olhos de ressaca – levanta e segue em frente.
Não por ser forte, e sim pelo contrário… Por saber que é fraca o bastante para não conseguir ter ódio no seu coração, na sua alma, na sua essência. E ama, sabendo que vai chorar muitas vezes ainda. Afinal, foi chorando que ela, você e todos os outros, vieram ao mundo.


Caio Fernando Abreu

sábado, 6 de agosto de 2011

"Save you from yourself, before you start to deal with everyone else"

Não creio que vá conseguir tirar algo de útil de tudo isso que vem acontecendo, desse vazio que estou sentindo, dessa depressão toda. Minha inspiração parece ter fugido de mim e para um desabafo, não acho que conseguiria transformar isso numa crônica ou em uma metáfora. Não quero maquiar nada, quero apenas arrancar daqui de dentro tudo isso que vem me fazendo mal ultimamente. Dramatizar um pouco, reclamar das injustiças do mundo todo. Dizer que não sou adequada a nada, nada que me proponha a fazer. Dizer que meus pais não me compreendem, coisa da qual nunca reclamei. Reclamar da vida. Mas então paro por apenas um segundo e percebo o quão ridícula estou sendo, por não conseguir me mover, tanto física como psicologicamente falando. Não consigo me mover e procurar uma ajuda qualquer. Poderia usar uma desculpa pra beber até cair e então me entorpecer, pois aí eu esqueceria. Mas nem isso me sinto habilitada a fazer. É um vazio tão grande... Um vazio que eu não imaginava que fosse realmente possível de se sentir. E não sei nem se é doloroso mais. É apenas vazio, escuro e seco. O vazio da falta de obrigações na minha vida. Vazio da falta do que lutar. Ou talvez por ter muito pelo que lutar e não ter incentivo algum.

Parece egoísmo falar deste modo, quando seus pais olham pra você e dizem que é só mais uma crise adolescente, que não há motivo algum para uma depressão como essa, pois "eu tenho tudo". Eu não tenho tudo. Quando me vejo obrigada a me refugiar em um mundo que nem existe, vejo o quão perdida e sem rumo eu estou. Pessoas que eu queria próximas de mim por achar que as que eu já tenho aqui não são suficientes e apenas para salientar ainda mais a minha solidão. Perceber que ninguém compreende o que você está querendo dizer e enquanto você fala, repete e repete mais mil vezes, os pensamentos de quem está ali do seu lado estão longe, muito longe. Você apenas conversa com corpos que não estão sequer lhe dando ouvidos e repetem roboticamente expressões já gravadas na memória. "Esqueça isso porque não vale a pena". "Não acredito que ainda está se sentindo assim por isso". Ou mesmo "cresça". Eu adoraria crescer, mas quando me vejo nessa situação toda onde pareço não ter uma saída, gostaria de ter estacionado. Vejo que não é nem um pouco fácil conviver no mundo adulto. Num mundo onde um é mais hipócrita que o outro. Onde pessoas vão passar por cima de você e sorrir como se nada tivesse acontecido. Onde pessoas vão te enganar, mentir pra você.

E eu já estou cansada de tentar mostrar pra todo mundo que eu estou bem, enquanto passo dia após dia dentro do meu próprio quarto. Criei um mundo confortável aqui dentro e adquiri o medo. O medo que eu nunca tive de sair lá fora e lutar pelo que eu mais queria. Pessoas nos transformam em seres mais fracos, ao invés de fortalecerem a sua mente, eles apenas te enfraquecem mais ainda. Te trazem para baixo e mostram o quanto você é melhor quando está sozinho. Deveria ser nobre e digno querer alguém, necessitar uma presença amiga ou até mesmo um amor. Mas dia após dia eu me vejo cercada de gente que busca cada vez mais a solidão. Porque é mais fácil lidar consigo mesmo do que lidar com outras pessoas.

Não se pode aceitar as diferenças, não se poder ser diferente. Para estar bem com os outros, é de extrema importância não se mostrar. O mundo nos ensina a falsidade como arma de fogo para qualquer empecilho. Um sorriso já perdeu há muito tempo seu real significado e lágrimas já não comovem mais porque nunca é possível saber quando são verdadeiras. E toda a verdade agora se esconde em momentos íntimos, quando nos encontramos sozinhos em nossos quartos, presos dentro de nosso próprios pensamentos. Ali, num quarto escuro e isolado dentro de nossas mentes, está nosso verdadeiro "eu", que precisou ser trancado e escondido do mundo, nos obrigando a colocar em nossos rostos esse sorriso de simpatia. Até nossos pensamentos estão sujeitos a se trancarem num canto escuro de nossas mentes e, de certo modo, mesmo sozinhos, às vezes temos medo de lidar com nossos próprios pensamentos. Porque às vezes eles nos assustam, não nos conhecemos de verdade. O mundo nos proibiu da verdade.

E daqui de onde escrevo, de longe, mas talvez tão perto, presa em meu próprio mundinho, as coisas seriam menos complicadas se ninguém tivesse medo da verdade do outro. Mas quando se tenta dizer a verdade, tudo que dizemos, parece apenas um grande drama literário cheio de palavras bonitas, metáforas e lições de moral pra gente que gosta de ler. Mais nada. Vai passar batido como se fosse só mais um texto fictício e as pessoas vão passar por ele, ler, gostar. E fingir que é apenas uma revolta imaginária. Vão fingir que esse conflito interno não existe. Ninguém conhece ninguém por dentro e os únicos capazes de colocar um pouco mais de verdade no mundo somos nós mesmos.

Mas ninguém quer, porque a verdade assusta. E machuca.