sábado, 22 de junho de 2013

quinta-feira, 16 de maio de 2013

Reminiscências de Sylwia, a Sala Suicida


Me chamo Sylwia. O sobrenome não importa, nunca importou e não vai ser agora que vai importar. Costumava me identificar, antigamente, como "Sala Suicida". O apelido não era apenas uma apologia, era um desejo, que depois se tornou uma decisão e hoje é apenas um pesado fardo que carrego junto com uma promessa muda que precisei fazer; eu prometi que iria viver.
Há alguns anos conheci um garoto que se chamava Dominik. Dominik Santorski. Por alguma razão, na realidade onde ele vivia antes de me conhecer, sobrenomes eram uma coisa que importava e muito. Dominik me mostrou um lado diferente da vida, um lado onde ainda havia esperança de melhora. Dominik me tirou da escuridão em que eu me encontrava. E hoje, Dominik está morto. Alguns dizem que por minha causa, eu acredito que sim e eu não me orgulho disso. Mas às vezes também, gosto de pensar que eu fui a sua coragem. Ele não era uma pessoa feliz, eu não sou também, quando nós dois nos encontramos, as nossas infelicidades fundiram-se no que eu consegui até hoje chegar mais perto de um relacionamento. 
Antes de conhecer o Dominik, três anos antes eu resolvi que não precisaria mais mostrar a minha cara ao mundo. Meus pais tentaram de toda a forma me tirar de lá, durante umas duas semanas, mas depois, com o tempo eles apenas acostumaram-se ou conformaram-se com a ideia de que eu não iria sair de lá. E o que mais eles poderiam fazer por mim? Me bater? Me matar? Seria até melhor, era tudo que eu esperava que me acontecesse naquela época. Eu tinha um computador, eu não precisava de outra coisa. Tudo o que me era necessário, eu podia encontrar dentro de mim mesma, era isso que eu repetia na minha cabeça constantemente, porém eu estava tão vazia que tudo que eu encontrava lá dentro era um desejo constante de abandonar esse mundo. Esse mundo sujo, sem amor, sem respeito. Esse ar sujo que me sufocava a cada segundo. 
De certa forma, o que eu queria era escapar. Dominik me deu isso.
Eu via nele um espelho até muito fiel do que eu fui um dia, eu tive uma vida antes de decidir que o meu quarto seria o único espaço do mundo onde eu estaria realmente segura e que eu mesma seria a melhor companhia que poderia ter. A escola foi um inferno no meu tempo, eu não suportava as pessoas lá. Os sobrenomes que importavam, os carros que importavam ainda mais. A aparência das garotas, todas iguais. Os bailes, os garotos, as garotas, as notas. Tudo naquela realidade me deixava absolutamente enjoada. A minha própria família me deixava enjoada. 
Às vezes a gente acerta um ponto na vida que pouca gente conhece, somos pessoas especiais, pessoas que possuem a habilidade de acertar esse ponto e perceber que a vida não passa de podridão e hipocrisia. A maioria das pessoas não acerta esse ponto porque se conforma, mas eu... Eu nunca me conformei. Eu ainda penso em suicídio, a Sala Suicida ainda vive em mim, ela nunca vai deixar de estar lá. Mas eu não posso morrer. Eu não posso morrer, porque Dominik queria viver. E Dominik morreu, a única coisa decente que eu posso fazer pra dizer que a minha vida teve algum sentido é viver, viver por ele. Nos chamamos hoje, eu e algumas outras pessoas que antigamente comandavam a Sala do Suicídio comigo de "Sobreviventes do Suicídio". Para eles é uma piada, eles encontraram a graça da vida, encontraram razões para não querer mais morrer. Eu continuo esperando silenciosamente o meu momento, eu apenas não posso acelerá-lo. Eu sei que Dominik entenderia, ele sempre entendeu.
Tem dias que é insuportável pensar nele, eu ainda mantenho a minha conta na Sala do Suicídio, eu entro lá, caminho pela nossa árvore de fogo, a que ele fez especialmente para mim. Gosto de fazer isso à noite, porque no céu tem uma porção de estrelas, a paisagem também havia sido escolhida por ele. Eu ainda lembro quando ele sumiu, ainda lembro a raiva que eu senti por ele não ter atendido ao meu último pedido, a raiva que senti quando não o encontrei no bar. Eu lembro tudo que eu queria lhe dizer quando ele aparecesse novamente, mas os dias foram passando e eu não tinha notícias. E eu não entendia, mas eu não podia morrer antes de falar uma última vez com ele. Então ele apareceu, da forma como nós nos encontrávamos sempre, no jogo. Todos estavam lá, todas as pessoas que nós considerávamos como nossa família. Porém, não era ele, ele estava diferente.
Eu me chamo Beata Santorska. Sou a mãe do Dominik. Aquelas palavras nunca saíram da minha cabeça. Mas eu esperava que ela dissesse apenas que o Dominik havia fugido de casa ou que ela desejasse me dar uma bronca, esperava que ele tivesse sido descoberto. Mas não, não era nada disso. A mulher me agradeceu e depois, chorando, me disse as únicas palavras que eu jamais desejei ouvir na minha vida e muito menos no fim dela. O Dominik está morto. Ele cometeu suicídio há algum tempo. 
O insuportável é pensar que aquilo foi minha culpa. Eu o fiz conseguir os comprimidos, eu quis que ele me encontrasse naquele bar. Mas eu não sei porque ele esperou que eu estivesse lá três dias depois do que combinamos. Bom, eu também havia perdido a noção do tempo quando me isolei, talvez ele tivesse alguma esperança até o momento.
Eu sei que eu não fui a culpada pela morte dele, não sou assassina e eu sempre disse a ele que ele deveria viver. Era eu quem queria morrer, era eu quem deveria estar morta. Porém, às vezes eu penso novamente e a única coisa que eu gostaria hoje, não é a morte, a única coisa que eu gostaria hoje era ter encontrado o Dominik naquela noite, dançado com ele, abraçado, beijado e nunca ter deixado ele ir. Às vezes me passa pela cabeça que se nós tivéssemos nos encontrado, eu poderia tê-lo salvo, da mesma forma como ele me salvou. 
Hoje eu vivo, eu vivo por Dominik. A minha vida é emprestada. Eu tento não ficar no quarto o tempo todo, mais. O estranho disso tudo, é porque o meu quarto é o lugar onde eu mais lembro do Dominik, mesmo sabendo que ele nunca esteve lá. Mas aí eu penso melhor e ele esteve. Ele esteve comigo por muitas vezes lá, ele até dormiu lá comigo. 
Eu não acredito em destino ou nessas coisas que as pessoas gostam de usar para justificar atos e consequências, mas de vez em quando, tento me enganar dizendo que o que aconteceu, apenas aconteceu porque assim deveria ter sido, que aconteceu como estava para acontecer. 
Um pouco de mim, e não me considero nenhum monstro por pensar isso, eu o conhecia melhor do que qualquer outra pessoa, para poder afirmar, mas esse pouco de mim às vezes acredita que Dominik não estaria feliz se tivesse ficado. Aqueles porcos acabaram com a vida dele na época do colégio. Os mesmos porcos que também acabaram com a minha. Os mesmos, porque para mim, as pessoas lá fora, na realidade, elas são todas iguais, todas podres por dentro. Por mais que não sejam as mesmas pessoas, elas são todas iguais. 
Dominik e eu éramos especiais, porque éramos diferentes. Eu ainda sou, mas vejo a mim mesma depois de tudo aquilo que aconteceu, apenas como um eco, uma sombra. O que eu fui, ficou lá. O que eu fui, morreu junto com ele. Estou aqui apenas cumprindo uma promessa que eu nunca fiz, mas me sinto obrigada a não quebrar. As poucas pessoas que partilharam conosco a Sala do Suicídio, elas eram diferentes também, eram todas especiais. Elas se curaram, algumas, acredito eu, hoje passam absolutamente despercebidas no meio dos outros, são sombras como eu e ninguém imagina que um dia elas quiseram acabar com as próprias vidas. Elas ainda não pertencem a este mundo, eu também não pertenço.
A espera é cruel, antes eu me agarrava na esperança que eu tinha de encontrar alguém que pudesse me levar embora. Às vezes eu também me permito sentir raiva do Dominik, eu penso que ele foi egoísta, que ele tinha que ao menos ter me levado junto com ele. Mas eu me sinto culpada quando começo a pensar desse modo. Acho que a única coisa que eu queria de verdade era ter ficado junto dele, era tê-lo encontrado no tempo certo. 
Eu não sei mais quanto tempo eu vou aguentar. Acredito que eu ainda vá acabar quebrando a minha promessa qualquer dia desses, mas por enquanto eu ainda não posso. Ser forte era o que eu sempre tentava colocar na cabeça do Dominik. Eu lembro como eu me senti orgulhosa quando ele enfrentou aqueles porcos da sala dele no colégio. Ele realmente se mostrou um grande herói. No final das contas, era isso mesmo que ele era, um herói. O meu herói em uma armadura brilhante, que salvou a minha vida, que deu a sua própria vida em troca da minha.  E com isso, ser forte é a única coisa que me resta ser.
Eu sou forte por Dominik. E Dominik também foi forte por mim. 
Nós ainda somos a Sala do Suicídio. Eu ainda sou a Sala Suicida.

terça-feira, 14 de maio de 2013

sábado, 11 de maio de 2013

Menina


"Chorando o gelo que você me deu, achando que você já me esqueceu. Não sei se foi você ou se fui eu, menina. Eu to ficando com uma sensação que eu fui a pista e você, o avião. Você o trem e eu a estação, menina. Eu lembro beijos, blues e poesia. Eu lembro a cara que você fazia, será que eu lembro o que não existia? E eu te procuro até não poder mais, na Internet, nos bares, nos jornais. Trombar você é o que eu quero mais, menina." (Beijos, Blues e Poesia - K-SIS)

Dias comuns: mais um desabafo cotidiano



Eu já nem sei mais quanto tempo faz, eu não conto mais. Eu sei que são dias como esse os que eu sinto mais a sua falta. É, dias comuns, sem nenhuma razão aparente. Sei que não tenho mais controle algum sobre isso, às vezes, como na noite passada, sonho com você. Eu ainda sonho com você e eu acho que ainda espero o dia em que tudo isso vai deixar de ser esse pesadelo infinito e recorrente. Às vezes eu te busco no que ainda restou de você em mim ou comigo, tenho essa pequena caixa de memórias dentro da minha cabeça e fragmentos de você espalhados pelas minhas coisas. Acho que você fez parte de mim por tanto tempo que tudo que é meu tem algo de você, mesmo que você nunca tenha sequer encostado nas minhas coisas. Tem alguns dias, eu tento aproveitar esses dias, são aqueles dias em que eu nem lembro mais como você se parece, seu nome demora a aparecer na minha mente, mas são poucos os dias em que eu te esqueço, eles são raros. Tão raros que eu não consigo me lembrar qual foi a última vez que você não foi a última coisa que eu pensei antes de dormir, a última vez em que você não me visitou nos meus sonhos. Qual foi a última vez que eu não fui atrás de notícias suas, sem você nem saber. Acho que bem lá no fundo, eu ainda tenho um desejo escondido de que você volte, por mais que eu saiba que é sempre a mesma coisa. Às vezes eu penso em você e só me lembro do que nós éramos, não sei se você ainda tem na mente aquilo que a gente já foi um dia, antes de nos tornarmos esse enorme e confuso nada, cheio de fragmentos magoados e sensíveis. Nós éramos algo e estávamos destinadas a ser algo grande, disso eu posso me lembrar perfeitamente. Os nossos caminhos fugiram totalmente do percurso, parece até que deixamos isso inacabado e que não vai ser nem nessa vida que vamos ter a chance de concluir as nossas pendências. Às vezes chego a pensar que um dia a gente ainda vai se ver, que um dia isso ainda vai ter o ponto final, o tal corte final que eu tanto preciso pra deixar de ter o seu fantasma sempre me assombrando. Mas é besteira. E em dias como esse, dias comuns, dias sem nada em especial, eu sinto muito a sua falta. Sinto vontade de ter algo seu me esperando, sinto vontade de poder mostrar algo que vi e que me lembrou você. Em dias tão comuns como este, sinto uma vontade imensa de apenas conversar com você, rir de alguma coisa, contar uma besteira. Em dias como esse, são os que eu fico com mais raiva de mim mesma por querer tanto que você ainda estivesse na minha vida. 

sexta-feira, 10 de maio de 2013

Possibilidades Impossíveis



"Existe essa pergunta muito antiga, mas pouco questionada, ninguém pensa sobre isso, ninguém pensa sobre o destino ou esse capricho sem nome em que somos encaixados. Existem algumas situações em que se costuma dizer que estávamos no lugar certo na hora certa. Mas hoje eu me pergunto: estamos de fato no lugar certo na hora certa ou no lugar errado na hora errada?"

Não era dia do meu plantão naquela noite, em dois anos e meio trabalhando naquele hospital, meus horários sempre seguiram uma disciplina linear, dias de trabalho, folgas, em dois anos e meio, nunca aconteceu aquilo. Eu lembro que naquele dia chovia muito e uma das enfermeiras não apareceu. Ela simplesmente não apareceu, não avisou, nada. Normalmente, teriam pedido para alguma das mais experientes para assumir a sua posição, mas acho que tudo aquilo aconteceu rápido demais para que elas pudessem manter alguma organização. Alguma das minhas colegas de trabalho, isso eu curiosamente não lembro com detalhes, não sei se foi Susie ou Anne, talvez não tenha sido nenhuma das duas, lembro apenas de alguém correndo até mim já com os trajes próprios para que eu pudesse entrar no centro cirúrgico. Eu tinha um pouco de pavor de entrar naquele lugar, eu não gostava, a minha função não era aquela, mas eu não podia simplesmente dizer que não iria e pronto, acima de tudo, lá estava uma pessoa precisando de cuidados.
Era um parto. Eu fiquei um pouco mais aliviada quando soube que era isso, pois eram as cirurgias complicadas que me davam arrepios só de pensar. Um parto, o que tinha de mais em um parto? Era apenas uma vida vindo conhecer o mundo. Eu senti pena pela criança, eu sempre sinto pena quando alguma nova criança nasce, acho que se elas pudessem escolher ou se soubessem como realmente é aqui fora, jamais iriam querer sair. Aliás, elas jamais iriam querer descer.
Eu me troquei o mais rápido que pude, me higienizei e corri para o centro cirúrgico. Eu descobri que a minha função lá não seria nada mais do que acalmar a nova mãe, que estava gritando muito. Eu não era muito boa com essas coisas, mas respirei fundo e tentei colocar em mim a melhor expressão de segurança, apenas para aquela mulher que estava precisando no momento.
Ela estava, de fato, gritando bastante quando cheguei lá. Eu olhei para o rosto da mulher, que na verdade passaria fácil por uma menina, tinha uns traços delicados, apesar de serem firmes. E a sensação de que eu já tinha visto aquele rosto em algum lugar era tão grande que chegava a me incomodar. Eu segurei a mão dela, enquanto tentava estabilizá-la com um pano umedecido em sua testa e rosto, ela apertou tão forte a minha mão que se não estivesse tão fraca, creio que ela teria conseguido quebrar alguns dos meus ossos. Tentei lhe dizer que estava ali, que ela poderia confiar na equipe, mas ela deveria estar sentindo muita dor - e não era pra menos -, mas a verdade é que além do que eu já falava, não tinha muita coisa que eu pudesse dizer para confortá-la. Eu apenas apertei sua mão com força e pensei em cantar para ela, talvez fosse uma boa coisa a se fazer. Comecei apenas a murmurar algo, no início nem eu mesma tinha certeza do que era, mas depois a minha melodia baixinha foi tomando forma, naquele mesmo instante, ela pareceu se acalmar subitamente. Continuei murmurando aquela canção para ela e tentando incentivá-la a se esforçar e empurrar, até que estivesse tudo acabado. Depois de um pouco mais de esforço e de tempo, logo todos pudemos ouvir aquele chorinho confortador.

O brilho nos olhos dela quando recebeu a criança em seus braços - era uma menina - fez o meu próprio coração se aquecer. E eu nem sabia qual era o nome daquela jovem, apenas sentia que lá no fundo ela já havia passado pela minha vida, há muito, muito tempo, mas eu não podia me lembrar. Eu saí da sala de cirurgia antes de todos os meus colegas, não conseguia ficar lá por muito tempo e, como não estava acostumada, era tanto um choque para a mãe receber a filha em seus braços, quanto era para mim ter sido responsável por tranquilizar a paciente.

— x —

"Você fez um ótimo trabalho lá, Al." O próprio Doutor responsável pelo parto veio me congratular, ainda me lembro de ouvi-lo dizer que nunca ninguém havia acalmado uma de suas pacientes tão bem quanto eu havia conseguido. Às vezes, quando me lembro disso, me dá uma pequena pontinha de saudades daquela profissão.

— x —

A minha vida poderia ter seguido um rumo tranquilo, eu havia ajudado um dos médicos mais atenciosos daquele plantão, havia mesmo indiretamente, ajudado a trazer uma vida ao mundo e tudo estava bem. Mas foi o dia seguinte que veio como um absoluto choque, um tapa violento na minha cara, que mesmo invisível deixou marcas que ficaram presas por baixo da minha pele, de um modo que eu nunca pude removê-las.

"Alexia, tem alguém que quer ver você." Dessa frase eu lembro perfeitamente e tanto quanto, me lembro de ter sido dita por Anne. Talvez tenha sido Anne que me arrastou para o centro cirúrgico naquela noite, também.

Eu fui mandada até o quarto da paciente que eu havia acalmado, porque ela gostaria de me agradecer pelo que eu fiz por ela. Curioso mesmo era o fato de ninguém sequer se importar em me dizer o seu nome, mas suponho que eles acreditassem que era a minha obrigação saber.
Quando eu cheguei no quarto, a enfermeira já estava levando o bebê para fora do leito e a mãe estava cobrindo um de seus seios, quando ela me viu entrar, sorriu. Aquele sorriso, por que eu não reconheci antes? Eu poderia ter evitado aquilo.

"Disseram que queria me ver." Eu disse e parei perto da cama, constrangida era a palavra para me descrever naquele momento.
"Senta." Ela deu um tapinha fraco perto de si e eu me sentei na beira da cama. Ela me olhou e pude jurar que ela também sentiu aquilo que eu senti ao vê-la, aquela mesma sensação de reconhecimento. Nos encaramos assim por algum tempo, até que ela quebrasse o silêncio. Posso dizer que ela se incomodou com aquilo. "Eu gostaria de te agradecer por... Erm... Pelo que fez por mim, lá. Sabe..."
"Eu estava apenas fazendo o meu trabalho, você não precisava se--"
"Você cantou algo pra mim, algo que só cantaram uma vez em toda a minha vida... Era como se você soubesse-", ela tossiu, antes de continuar. "Como se você soubesse que aquela era a única música que poderia me acalmar. Deus... O que eu estou dizendo? Eu nem deveria estar pensando nessas coisas..."
"Eu não sei porque eu pensei naquela música, exatamente naquela." Eu estava sendo sincera, até aquele momento, eu realmente não sabia. "Pensei que poderia ajudar... Eu--eu não sei. Senti, senti que poderia servir."
"Era... Yellow. Reconheceria aquele tom em qualquer lugar do mundo. Me diga, qual é o seu nome?"
Eu jamais esqueci aquele momento.
"Al... Alexia."

Os olhos dela cresceram um pouco e ela levou as duas mãos até os lábios, cobrindo-os. Pensei que fosse ter um ataque ali, o que fez eu me levantar muito rápido. Pude perceber que logo depois do choque, lágrimas começaram a descer pelo rosto dela. Nunca resisti ao que uma mulher chorando podia fazer comigo, então no lugar de recuar, eu me voltei para ela e a abracei. Ela me apertou muito forte contra os seus braços, mas soluçava de forma incontrolável, ficou assim por algum tempo até começar a se acalmar e dizer algo que eu não compreendi em meio aos seus soluços.

"Em... Emily." Foi o que ouvi ela dizer, quando nos separamos, as duas mãos dela esfregando os próprios olhos e o rosto e aqueles olhos grandes fixados em mim.

Era ela.

A situação esquisita aqui, foi o fato de nós não termos nos reconhecido, porém ao mesmo tempo, não teria como. Eu estava muito diferente do que ela havia conhecido de mim, nós éramos adolescentes, em nossos 16 anos quando vivemos a nossa história. Eu, porém, nunca esqueci aquela menina. A menina que foi o amor da minha vida. Porém o rosto dela ficou gravado na minha memória de uma maneira ainda mais jovem e pela minha vida, depois que me mudei, sempre via mulheres pela rua que se pareciam com ela, cruzava por aí com elas e abaixava a cabeça, pensando que qualquer uma delas poderia ser ela e que ela não se lembraria de mim. Eu também comecei a chorar, mas até mesmo pela minha profissão, eu conseguia conter isso muito melhor.

Eu não consegui abrir a boca pra dizer nada e nunca vou saber se ela tinha mais alguma coisa para me dizer, eu dei um passo e fiquei na frente dela, coloquei alguns dos seus cabelos atrás de sua orelha e sorri fraquinho, um beijo na testa, foi a única coisa que eu pude deixar nela. A porta do quarto se abriu e entrou por ali um homem loiro, bonito, parecia simpático, mas carregava consigo um semblante preocupado que adquiriu provavelmente ao ver a mulher naquele estado. Eu havia me separado dela antes que ele entrasse no quarto, ele veio direto na direção dela e beijou-lhe a face, a testa, os olhos e a boca, só percebeu que eu estava ali depois de dar toda a atenção que sua mulher merecia.
Nada mais foi dito.

Eu olhei para ela uma última vez, sorri fraco e saí do quarto. Pedi demissão da clínica no mesmo dia, passei pelo berçário, observei a filha de Emily por algum tempo antes de ir embora, dei a volta pelo outro lado do estacionamento quando vi o marido dela vindo na direção onde eu estava e essa foi a última vez que eu soube sobre Emily.
Eu fugi, larguei aquela profissão, mudei de cidade. Quando jovem, havia largado o curso uma vez e depois resolvi voltar, por dois anos e meio exerci aquilo como uma paixão, por mais que não gostasse tanto do que fazia. Mas Emily sempre aparecia em algum ponto da minha vida e eu havia aprendido a correr dela, a correr dos pontos no tempo onde as nossas vidas se cruzavam.

Eu não sei se eu estive no lugar certo na hora exata, ou se não havia momento pior para eu estar presente, naquele dia. Às vezes penso se aquela vida era a vida que nós teríamos formado, eu, ela, uma bela garotinha. Mas depois eu penso melhor, a vida que Emily queria era muito diferente da vida que eu poderia lhe oferecer. Me pergunto todos os dias como estão ela e a menina, mas não me atrevo a procurar notícias, não me atrevo tentar encontrá-las.

Aquela página que eu havia arrancado poderia até voltar algumas vezes, pela caixa de correio ou pelos ventos que a traziam de alguma forma, mas eu não podia ignorar o fato de que era definitivamente uma página arrancada que não poderia ser fixada novamente no meu livro.

A Beautiful Mind



My Own Private Idaho




quinta-feira, 2 de maio de 2013

Tic-tic-tic


"We're now living here in a world of painting where everything is occupied by people who all intercept money. And you mustn't think that I'm imagining things. People pay a lot for the work when the painter himself is dead."

Vincent van Gogh

Parar

Acho que na maior parte do tempo eu me sinto extremamente frustrada. Frustrada e cansada. É um cansaço que não é facilmente compreendido, porque é um cansaço invisível. Eu me levanto todos os dias, ando de um lado para o outro nessa casa. Raramente saio, o contato com o mundo lá fora chega a ser quase escasso. E mesmo assim me sinto terrivelmente cansada. Cansada de existir. Cansada de continuar acordando todos os dias apenas pra respirar, mas sem propósito. Às vezes quero enfiar algum objeto afiado ou pontiagudo em qualquer parte da minha pele apenas pra ver se ainda sangra, porque há um bom tempo tenho essa sensação de que eu não vivo mais; eu apenas existo. E apenas existir é cansativo. Às vezes quero simplesmente parar de respirar, como um carro sem combustível simplesmente para subitamente no meio de uma estrada qualquer. Queria que fosse assim simples, apenas parar. Queria deitar de forma aconchegante nos trilhos de algum trem. Já faz tanto tempo que eu não sinto nada que chego a duvidar se poderia ouvir e sentir meus ossos quebrando e a vida abandonando o meu corpo. A questão aqui não é nem o suicídio e a busca desesperada de um fim. O que eu queria, o que eu adoraria é apenas parar. O tempo todo sinto vontade de interromper essa falta de sentir, pra ver se quem sabe assim eu sinta alguma coisa. Às vezes tenho um desejo sombrio de não mais ter que levantar da cama, comer, me olhar no espelho e voltar pra cama, dia após dia. Me sinto frustrada por não sentir mais frio ou calor e mesmo me obrigo a cobrir o corpo com lã ou despi-lo, quando a conveniência me obriga. Me sinto ainda mais frustrada por sentir dores que vem e vão. Até as dores me abandonam, não duram, não são permanentes. Queria me sentir viva. Quero, desejo. Necessito sentir qualquer coisa. Queria sofrer, chorar e gritar por um motivo maior que a frustração de estar presa em um lugar como este. Queria chorar por um motivo novo, estou cansada de chorar apenas pelo exercício do que eu deveria sentir. Me sinto profundamente cansada de lembrar. Às vezes sinto vontade de arrancar meus próprios olhos com as minhas próprias unhas, talvez cega eu consiga ver algo. Às vezes sinto vontade de não abandonar a cama, não comer, não me olhar no espelho. Mas o que eu mais queria nessa vida era parar. De forma simples e rápida. Queria simplesmente parar.

Em Mãos


Se a terra girasse ao contrário, eu provavelmente poderia sentir, pois era assim que você fazia o mundo acontecer pra mim. Era o inverso de tudo que é bom e ruim e no final das contas, já não sei se você foi boa ou péssima. Mas você foi minha. E passar por você, vê-la com outra pessoa e sorrir, como se eu nem te conhecesse bem, faz o mundo girar rápido e ao contrário, até que ele se abre abaixo dos meus pés. Me sinto tentando inutilmente me agarrar a qualquer apoio firme, mas eu estou caindo tão depressa nesse abismo trêmulo, tão trêmulo quanto as minhas mãos e elas simplesmente não se firmam. Eu caio como um peso obedecendo as leis da gravidade e sem leveza ou graciosidade. Deveria sorrir por você, e fiz; deveria compreender que  eu não era o que você precisava, e compreendi. E agora eu estou caindo ainda mais rápido, porque eu sei que estou mentindo para mim mesma e a gravidade furiosa agora parece querer me castigar. Nenhuma mão me segura aqui, a queda é livre e insegura. Provavelmente vou morrer quando chegar ao final dela, mas essa queda parece infinita. E vejo você em todas as direções que olho e mesmo quando fecho os olhos. E a mesma cena se repete. Ele está te abraçando e então ele desaparece, mas suas mãos continuam em você. Na minha frente ou em qualquer outra direção, só existe você e milhares de mãos pelo seu corpo. Vejo o modo que elas te seguram e você está segura. Está em boas mãos, eu presumo. Está em mãos.

Les Fiancés du Pont Mac Donald





sábado, 27 de abril de 2013

Empty hands is all I've ever had






Paradoxo: O Estranho Conforto da Solidão Acompanhada




Não há nada de muito interessante, nem nada de novo em olhar a chuva pela janela de um apartamento onde eu passei toda a minha infância e adolescência trancado e sozinho. Meus pais saiam cedo para trabalhar e eu não podia descer para o playground e brincar com os garotos da minha idade. Ficava em casa, totalmente sozinho. À noite meus pais chegavam, cansados demais para sentar-se ao pé da minha cama e ler uma história para que eu dormisse, não que eu realmente estivesse interessado na história, lia todos os livros que tinha em casa pra passar o tempo, mas me interessava pela companhia deles, pelo menos na época. Estavam sempre estressados demais também, para que eu pudesse lhes contar que havia aprendido a fritar um ovo sozinho com seis anos de idade, mesmo que isso não fosse assim tão genial. Quando muito eles brigavam comigo por ter deixado a casa uma bagunça ou por quebrar um copo sem intenção. Eu sempre fui muito só, desde pequeno, mas eu não conhecia muita coisa do mundo lá fora, eu acreditava que era assim que as pessoas eram. Todas singulares.


Durante esses anos de solidão criei em torno de mim uma espécie de bloqueio. Eu vim ao mundo para estar sozinho, foi isso que meus pais me ensinaram quando eu era muito, muito jovem. E é isso que eu carrego comigo, é quase como um lema ou um legado de família. Hoje eu moro em uma quitinete de apenas duas peças. Nunca fui apegado a muitas coisas quando criança e isso me acompanhou por toda a adolescência. Tenho hoje 23 anos, mas sinto como se já tivesse vivido uma vida de 83 e ainda não existe algo que eu me sinta apegado. Sendo assim, essa quitinete barata é mais que suficiente, é um teto pra me proteger da chuva e um lugar onde eu posso ficar com quem sempre estive desde que nasci: eu mesmo. Eu me sinto constantemente cansado e eu não faço nada. Fico o dia todo dentro dessa quitinete isolada com meu violão e umas caixas de pizza que duram às vezes mais de três dias, ou o tempo que seja necessário para o termo “perecível” mostre seu significado. Eu nunca me importei muito com comida também, a maioria das coisas que eu compro acabam estragando antes mesmo de eu usar, então eu evito comprar muita coisa. E também nem se eu quisesse comer do bom e do melhor eu poderia. Tenho o que as pessoas costumam chamar de gênio forte, ou ao menos é o que eu já ouvi falarem pelas minhas costas ou mesmo na minha cara algumas vezes. Por essa razão, não é muito fácil encontrar um emprego que dure mais que algumas semanas. 

Eu tenho uma ajuda, claro, mas não sei como deveria me sentir a respeito disso. Esse é o reflexo do que eu me tornei, meramente sei identificar emoções óbvias. As complexas então, eu prefiro não tentar. Mas voltando ao ponto anterior, eu recebo bastante ajuda desse cara, Gabriel. Por alguma razão ele parece gostar da minha presença, mesmo que na maior parte do tempo tudo que eu faça seja o ouvir falar de forma incessante sobre qualquer assunto e balançar a cabeça concordando com tudo o que ele diz. Ele é uma boa pessoa, na verdade. Até eu sou capaz de enxergar isso, porque é realmente transparente a bondade que existe nesse cara. Eu acho que se eu fosse capaz de sentir, provavelmente sentiria algo por ele. Ele parece saber lidar comigo, entretanto, sempre me comunica baixinho momentos em que eu preciso sorrir e agradecer, sempre me avisa quando estou sendo rude ou inconveniente. É bom, eu acho, do pouco que entendo dessas convenções sociais, Gabriel é um bom amigo.

Esse Gabriel, aliás, já está na minha vida há um bom tempo e vem me ajudando desde o dia em que nos vimos pela primeira vez. Por isso às vezes tenho uma sensação de que sou um pouco injusto com ele, quando digo que não quero vê-lo ou fico semanas sem dar notícias. Eu acho que é o que as pessoas chamam de consideração, eu sinto um pouco de cada coisa, mas nenhuma delas é suficiente pra que eu me importe, mas ele não desiste, ele compreende. Ele sempre compreende. Às vezes eu acho até estranho. Eu não teria essa paciência. Aliás, eu não tenho paciência.

Quando o conheci me lembro que foi em um bar, numa noite como qualquer outra. Eu realmente quero dizer “como qualquer outra”, porque o que aconteceu naquela noite não era novidade nas minhas rotinas estranhas. Eu tinha deliberadamente arrumado uma briga com um cara que deveria ter quatro vezes meu tamanho depois de ter exagerado na bebida. Na verdade, eu estava relativamente sóbrio ainda, o suficiente pra saber que eu apanharia, porém, ninguém havia me perguntado se não era aquilo mesmo que eu estava procurando. Desde a minha adolescência eu descobri que a única coisa que eu era capaz de sentir era dor física. Aquilo funcionava, sempre que eu brigava e na maior parte das vezes eu apanhava fosse por escolha ou apenas por não ser páreo para o oponente escolhido, aquilo me enchia de prazer. Às vezes, eu chegava a agradecer na minha cabeça enquanto recebia os golpes de algum valentão, às vezes eu revidava, o prazer era um pouco menor quando era eu o provocador da dor, eu revidava por reflexo, ou apenas por começar a me sentir entediado enquanto estava apanhando. Mas aquela era a única coisa que por vezes me ajudava a lembrar que eu ainda era um ser humano de carne e osso, que eu sangrava como as outras pessoas e que eu podia sentir alguma coisa e que só talvez eu fosse um pouco menos a aberração que eu acreditava ser. Eram os momentos em que eu me sentia vivo de verdade. Eu arrumava as brigas mais ridículas por ai, apenas pra apanhar. Eu mexia com garotas acompanhadas, mesmo não sentindo atração por elas. Eu mexia com caras que obviamente não sentia nada mais que repulsa por bichas magricelas – como eu cansei de ouvir que era com o que eu me parecia. Bom, os comentários só me faziam rir, eu não tinha consciência dessa parte que as pessoas têm, onde uma ofensa é tomada como uma ofensa. Xingamentos eram os meus melhores gatilhos para conseguir o que eu queria: alguém que me fizesse sentir. Eu não acho que meu complexo fosse esse complexo besta e banal dos adolescentes de automutilação, particularmente eu não via qual era a graça em causar a minha própria dor, tentei isso várias vezes e nunca funcionou comigo, eu não senti absolutamente nada. Sentia o prazer vulgar de ter algum dos ossos quebrados por alguém que eu mal ou sequer conhecia, mas não conseguia sentir sequer um filete de felicidade ao provocar minha própria dor.

Por esse motivo, eu poderia ter ficado extremamente puto com o tal Gabriel quando ele tirou o cara de cima de mim naquele bar, pois aquela era a minha terapia e eu não precisava da ajuda de ninguém. Mas por alguma razão me senti agradecido. A minha cara, eu lembro bem, já estava coberta de sangue e eu sentia aquele gosto peculiar e viscoso na boca. Meus ossos, aquele cara estava a um passo de triturar meus ossos com as próprias mãos. Eu agradeci o até então estranho que havia me salvado e fui saindo do bar pra não causar mais confusão, mas ele me seguiu até o lado de fora do estabelecimento.


“Ei, ei. Espere um instante!” Foi o que ele disse, segurando meu braço no momento em que me alcançou. Era estranho. Digo, raramente alguém encostava as mãos em mim sem a intenção de me bater. Na minha vida, as coisas funcionavam apenas de duas formas: alguém interagia comigo para brigar ou não interagia de forma alguma.

De qualquer forma, levantei os olhos para ele e tentei forçar um sorriso, porém não tive muito sucesso, todo o meu rosto doía. E o curioso é que toda a situação acabou levando embora o meu momento de glória, o momento onde eu supostamente deveria sentir algo.

“Erm… Obrigado pelo que você fez lá dentro.” Disse logo, talvez assim poderia cortar logo a conversa e ir pra casa. Eu acho que era disso que ele estava atrás, não era? De um “muito obrigado” apropriado e então a cortesia estaria consumada, ele poderia ir pra casa com uma vitória pendurada no peito como uma estrela de gratificação e contar pra quem o estivesse esperando tarde da noite que naquela noite tão singular, ele estava passando por um bar e salvou a vida de um cara que provavelmente ia apanhar até a morte. Um viadinho indefeso, que normalmente era o modo como as pessoas me enxergavam.

Porém ele estendeu a mão, eu fiquei pensando quanto tempo mais eu teria que jogar esse jogo de sociabilidade, já estava me vendo sem munições e aquilo me deixou levemente confuso por um momento, mas por sorte meu cérebro funcionava até bem rápido e ainda tinha um pouco da adrenalina da situação bombeando o meu sangue mais depressa, isso me ajudava a pensar melhor e mais rápido também. Estende a minha de volta e apertei a mão dele por um momento bem curto. Provavelmente mais curto que se pede a regra, mas mais uma vez, eu não tinha a mínima noção dessas regras.


“Gabriel.” Ele disse, sorrindo. Eu não tentei sorrir de novo, de qualquer forma, ele sabia que eu estava com os músculos da cara fodidos demais pra conseguir sorrir de volta. Foi aí que eu percebi, desde esse primeiro momento, que Gabriel era uma pessoa que compreendia o mundo de uma forma bem diferente das outras pessoas. E com o tempo, ter ele por perto sempre falando sem parar, só me fez ter mais certeza disso. Curioso é o fato de que até hoje eu não me incomodo, mesmo quando eu não estou com a mínima vontade de vê-lo, mas se ele aparece, eu não ligo. Às vezes fico meio frustrado comigo mesmo, pois criei um vínculo difícil de quebrar com esse cara, se eu não quiser mais ele por perto, precisaria pagar todo o dinheiro que eu devo e eu não teria condições, nem agora e nem em 20 anos, o cara praticamente salva a minha vida toda a semana, eu não podia simplesmente me livrar dele. Fico pensando se é assim que o mundo funciona para as pessoas normais, se você encontra alguém por acaso em alguma situação bizarra e de repente, sem nem perceber, você vendeu a sua alma a essa pessoa ou acorrentou-se miseravelmente a ela e não tem nem a remota chance de sair. Era uma armadilha perigosa deixar alguém salvar a sua vida ou, na menor das hipóteses, de ajudar de qualquer forma que seja.


Eu lhe disse meu nome naquela noite e nem pensei em talvez lhe dar um nome falso pra que ele não pudesse mais me achar. Ele caminhou ao meu lado, enquanto eu fazia o caminho silencioso em direção a minha casa, eu apenas olhei pro lado e ele percebeu, como sempre e logo tratou de explicar que era melhor que ele me acompanhasse até em casa, porque aquele cara do bar poderia estar me seguindo e esperando que eu ficasse sozinho pra terminar o que havia começado. Gabriel era bem sagaz, isso eu gostava, eu nunca precisei de mais que um olhar de reprovação para que ele entendesse que estava me entediando com um assunto, ou me irritando ou falando demais. Às vezes ele apenas sentava ao meu lado na minha casa e assistia qualquer porcaria que eu estivesse vendo na televisão e não falava por algumas horas, ele não conseguia ficar muito tempo quieto, mas se esforçava quando via que eu queria um pouco de silêncio. Ele me respeitava bastante, acima de tudo, mas todos os dias até hoje eu ainda me pergunto porque ele insiste em ficar na minha casa por horas assistindo algum dos meus filmes bizarros que só eu gosto ao invés de estar com alguma garota ou qualquer outro amigo que queira conversar com ele de verdade. Às vezes eu até penso que Gabriel talvez seja como eu, uma pessoa sozinha, mas chego a rir da minha cara ao cogitar essa hipótese, simplesmente porque pessoas como o Gabriel nunca ficam sozinhas. Mas nunca me ocorreu perguntar a ele sobre isso, talvez porque eu não queira ouvir um discurso de horas sobre a vida dele.

Na realidade, em meu estado normal eu diria que tanto faria se o cara me encontrasse ou não. O máximo que ele iria fazer seria me bater um pouco mais ou talvez ele fosse psicopata o suficiente para então me matar a sangue frio. Mas esse era o ponto máximo que ele poderia alcançar: me matar e despachar meu corpo em qualquer rio mais próximo. Seria um fim até bem peculiar para alguém que nunca fez diferença alguma na vida de ninguém, mas talvez eu estivesse apenas fantasiando demais. Apesar de todas essas coisas terem passado pela minha cabeça e eu realmente poderia ter dito, pois do que conheço de Gabriel hoje, ele teria rido, mas eu apenas dei de ombros – e senti todos os meus ossos protestando esse gesto – e simplesmente permiti que ele caminhasse comigo. Naquela noite talvez eu tenha realmente feito o papel de bicha assustada, que foi o apelido preferido dos meus colegas de classe no colegial. Porém naquela época eu não tinha medo, eu sabia que nenhum deles me mataria, todos tinham as asas dos pais pesando ainda sobre si, ninguém faria mais do que caçar uma briguinha com algum colega, apenas pra se auto afirmar. Era uma troca de favores isso que eu fazia no colegial, eles me davam o que sentir e eu lhes dava a estrela dourada que imaginei pendurada no peito de Gabriel quando ele me ajudou no bar. A gratificação. Porém naquela época, a gratificação dos garotos jovens pendia sempre no que era forte, no que era valente. Naqueles que batiam nos alunos mais fracos. E eu lembro que as garotas adoravam aquilo, corriam atrás desses meninos e faziam filas para que eles as convidassem para o baile ou apenas para transar no carro depois de um cinema. Tudo aquilo passava por mim como uma sombra do que eu jamais iria me tornar e às vezes eu até me sentia um pouco melhor. Ser sozinho não me atormentava e nem me incomodava, estar sozinho era mil vezes melhor do que estar acompanhado por aquele bando de idiotas.

Mas bem no fundo, mesmo quando eu era criança ou na minha adolescência, eu ainda desejava conhecer uma pessoa que pudesse entender o que eu sentia ou tudo aquilo que eu não sentia, alguém que pudesse conviver comigo, talvez até alguém que me mostrasse um mundo diferente daquele que eu conhecia. Quando meu pai morreu, eu saí de casa uma semana depois, já era insuportável conviver com os meus pais, mas eu de vez em quando conseguia me sentir quase normal perto do meu pai, ele parecia gostar um pouco mais de mim, ou me entender melhor. Era a minha mãe que eu não conseguia suportar sequer a presença. A voz dela me causava ojeriza. E eu jamais teria paciência pra consolar alguém, ainda mais esse alguém sendo a minha mãe. Eu saí de casa deixando apenas um bilhete para ela, deixei o endereço de onde estaria apenas para que ela não colocasse a polícia atrás de mim.

Minha mãe, é claro, nunca me procurou, não ligou, eu não sei mais nada dela. Ela pode até estar morta e eu nunca vou saber. Gabriel me perguntou uma vez sobre os meus pais, mas a única coisa que eu contei foi essa mesma história, que saí de casa pouco tempo depois que o meu pai morreu e que não sabia mais dela desde então. Gabriel acha que eu deveria procura-la e tentar acertar os ponteiros com ela. Às vezes ele tem essa mania desagradável de tentar me analisar e sinto como se ele estivesse o tempo todo procurando uma chave em mim, pra abrir alguma fechadura, como se houvesse uma e como se ela pudesse ser aberta. Na realidade, até me surpreendo, porque por mais quieto que eu fique, Gabriel até consegue às vezes me interessar sobre um assunto ou outro, ou ele começa com uma coisa e quando vejo ele já está fazendo perguntas e eu me pego respondendo. Quando eu percebo, porém, volto ao meu estado normal e vejo ele fazer aquela cara que ele faz e aí ele diz algo como “Droga, eu estava tão perto!” e então ele se senta pra assistir comigo o que quer que seja ou vai pro telefone pedir uma pizza. Ele aprendeu rápido que não precisava me perguntar sobre qual sabor pedir, porque eu comia qualquer coisa. Visto que eu não me importava, ele sempre pedia os sabores que mais lhe apeteciam. Sempre algo com bastante pimenta, isso eu posso garantir. Às vezes, mas isso era bem raro, eu pedia para que ele pedisse algo que não fosse tão picante, por causa do meu estômago. Os meus péssimos hábitos alimentares vez ou outra me sabotavam e aí eu via que era hora de me importar um pouco, ou me importar mesmo não me importando.

Por muito tempo, eu venho seguindo desse modo, Gabriel vem até a minha casa, vai embora, ele se tornou parte da minha vida, sutilmente, sem que eu percebesse. Aos poucos, eu fui parando de me importar, comecei a falar, mesmo que pouco, na verdade, era muito menos que ele, mas já era alguma coisa. Aprendi um pouco sobre ele, também. Gabriel nasceu em outro país, se não me engano, no Brasil ou algo assim. Se mudou para Manhattan quando criança, sua mãe desapareceu sem deixar vestígios, o pai não quis o fardo, o mandou para os Estados Unidos sem piedade. Gabriel morou com sua avó por algum tempo, mas ela morreu e ele ficou com a maioria dos bens dela, disse que ela o deixou com uma boa herança, pela gratidão de ter estado com ela por tanto tempo. Ele pensou em entrar para universidade, disse que queria Psicologia, nesse ponto, até achei bem compreensível então o motivo dele sempre entender as coisas e de ter um jeito especial de me fazer falar, sempre com muita paciência. Entendi também que o motivo dele desperdiçar tanto tempo comigo, era porque ele entendia o que era não ter ninguém. Ele teve a avó dele, na verdade. Um pouco mais do que eu tive, pois literalmente eu não tinha ninguém. Acho que por isso ele conseguiu desenvolver uma personalidade mais doce, eu era arisco, ele me descreveu uma vez como “gato assustado”, na época eu girei os olhos e achei a comparação patética, mas no fundo ele tinha razão. Ele quase sempre tinha razão ou estava certo nas coisas que dizia. Mas o ponto-comum entre nós é que ambos sabemos perfeitamente o que é a solidão. Eu não me permito sentir a companhia de alguém, eu nunca tive a companhia de alguém, mas quando Gabriel estava perto de mim, eu tão pouco sentia necessidade de buscar uma briga. Eu posso não sentir nada, mas esse nada, o silêncio vazio que paira com uma frequência talvez incomum em padrões de normalidade entre nós, por mais que a televisão esteja ligada não é nem de longe desconfortável. Não é desconfortável ouvir Gabriel falar sem parar, ele não se sente mal quando eu mando ele ficar quieto, porque ele me entende. Eu pensava que eu tinha nascido pra ficar só e de fato, eu estava sozinho. Mas eu encontrei uma solidão compatível com a minha e eu não precisava fingir. Eu podia ser.

Eu nunca consegui me interessar pela vista da janela, porque isso me lembrava a minha infância solitária e me lembrava o apartamento dos meus pais. Gabriel me sempre me pede com educação para mudar de canal ou desistir de algum filme, quando o tema principal envolve hospitais ou era algo sobre médicos. Acho que o pai dele era um médico, mas eu nunca cheguei a perguntar. Eu nunca precisei, eu apenas comecei a compreender um pouco as coisas da mesma forma que ele fazia. Pude compreender um pouco melhor sobre essas convenções sociais quando Gabriel apareceu, ele me ensinava essas coisas e ria, como se fosse um absurdo um ser humano não saber quando precisa agradecer e quando é o momento de sorrir ou demonstrar tristeza. Eu ainda não sabia e talvez isso nunca saia naturalmente, mas consigo me lembrar de algumas vezes em que eu ri genuinamente de alguma besteira que Gabriel disse. Compartilhamos também alguns gostos por certos filmes e séries, às vezes eu escolho ficar no meu canto quieto lendo um livro que Gabriel traz, ele conseguiu despertar meu interesse com a paciência que tinha, demorou muito tempo, mas ele encontrou livros que eu sinto vontade de ler até o final. Ele tinha paciência e vontade de me ajudar, uma paciência que meus pais nunca tiveram. Gabriel tira o meu tédio, isso é quase como sentir alguma coisa.

Eu não conheço os sentimentos, eu não sei o que as pessoas sentem e para mim, compaixão, amor, amizade, essas palavras não me dizem nada. Não sei o que Gabriel seria para mim se eu fosse uma pessoa normal, se seria um irmão, um amigo, um grande camarada ou um namorado. Eu não sentia essas coisas, tão pouco, eu não sentia desejo, atração ou calafrios desconhecidos. Gabriel não se importava, essa era uma parte que eu sabia pouco sobre ele, também. Eu não sei se ele sai e transa com as pessoas por aí, eu não sei se ele é hétero ou se é viado. Eu não sei o que eu seria, também. Se eu fosse uma pessoa normal, talvez ele fosse meu namorado. Mas ser essa pessoa solitária que eu sou e ter encontrado essa pessoa solitária que era Gabriel, nos tornava simplesmente William e Gabriel. Éramos indivíduos singulares, jamais pertenceríamos a um par, não existia uma metade para nos completar. Mas minha solidão acompanhava a solidão dele de maneira curiosa e de maneira ainda mais curiosa, eu não me importava. Não o não me importar típico de William, que não estava nem aí pra nada. Eu só não ligava, mas quando ele estava ali na minha quitinete velha e fodida, eu apenas não sentia a vontade e a necessidade de sair por aí procurando brigas pra sentir alguma coisa.

É que sobre estar só era a única coisa que entendia bem. E ele também. A solidão se tornava confortável quando acompanhada.

terça-feira, 23 de abril de 2013


"Silence is a power and tool for you."

Alphaville



"Nobody notices when we leave. I mean, the moment when we really choose to go. At best you might feel a whisper, or the wave of a whisper, undulating down. My name is Salmon, like the fish. First name: Susie. I was 14 years old, when I was murdered, on December 6, 1973. I was here for a moment. And then I was gone. I wish you all a long and happy life."