quinta-feira, 31 de março de 2011

O Copo de Vidro Azul

Quando eu tinha cinco, quase seis anos de idade alguém me ensinou uma coisa. Eu era apenas uma órfã, nem meus pais quiseram me suportar em casa e me largaram em um orfanato logo que eu nasci. Eu nunca soube o que era carinho de mãe, bronca de pai e jantar em família. Eu nunca conheci nenhum tipo de amor, talvez. E tudo que sei, eu devo à Irmã Pauline. Quando eu tinha lá pelos meus cinco ou seis anos, eu nem entendia muita coisa de nada. Mas eu me lembro perfeitamente bem, como se fosse ontem. Eu tinha um copo de vidro em minhas mãos, ele era de vidro azul, detalhado. Eu bebia suco. Suco de morango, vendo de fora ficava meio marrom, uma cor meio estranha. Eu perguntei para Irmã Pauline o que aconteceria se eu soltasse o copo no chão.
“Vai quebrar.” Ela respondeu. Era um pouco óbvio, mas eu era criança e não entendia muito bem. Perguntei novamente o que aconteceria e com toda a paciência do mundo, ela me respondeu com um sorriso. “Vai quebrar, é de vidro.”
Minha cabeça já perversa desde aqueles tempos matutou. Olhei bem nos olhos da Irmã e soltei o copo no chão sem piedade. Ele caiu e estilhaçou-se no chão, derramando o resto do líquido vermelho dali de dentro. Parecia sangue diluído em água, no meio de milhares de caquinhos azuis. Meus olhos também eram azuis bem fortes, as pessoas costumavam elogiá-los. Porém nunca serviram para que alguém me adotasse.
Irmã Pauline me castigou naquele dia.
“Eu te disse que o copo era de vidro, menina!” Ela disse brava. Nunca tinha visto a Irmã Pauline brava daquele jeito e ainda mais comigo. Ela me fez juntar cada caquinho do copo, eu me cortei, mas ela não ficou com pena de mim, colocou um curativo no meu dedo e me fez juntar todos os pedacinhos do copo. E depois me fez colar.
Ficou péssimo, pra ser sincera. E ela me fez beber água naquele copo. Ele arranhava um pouco os lábios da gente e machucava, mas ela não me deixou jogá-lo fora.
Bem, eu ainda tenho esse copo guardado.
Com 17 anos eu descobri que não era só o copo de vidro azul que não poderia voltar ao normal depois de quebrado. Eu fugi do orfanato, porque eu estava cansada. Ninguém nunca iria me adotar e eu não conseguia mais ficar naquele lugar. Meu problema não foi fugir, mas sim abandonar Marie. Eu não sabia o que nós fazíamos, mas crescemos juntas. Deveríamos nos tratar como irmãs e com todos aqueles ensinamentos religiosos eu tenho certeza que nossas almas iriam direto pro inferno desde o primeiro dia em que eu dei aquele beijo em Marie e a fiz se apaixonar por mim. Nunca vou esquecer a frase que Marie disse para mim uma vez:
“Meu coração está em suas mãos, Jolie.”
Nunca me senti culpada por amar e ser amada de volta por Marie. Pensava na Irmã Pauline e no sermão que eu levaria por amar daquela forma. Por amar uma menina. E no fundo eu sei que Marie se sentia culpada por me amar. Eu nunca tive medo. Talvez porque Marie era tão assustada, assim como uma gatinha, que eu tinha que mostrar pra ela que alguém a protegeria. Mas naquela noite em que eu fugi, eu sei que o coração de Marie era o copo nas mãos da Jolie aos seis anos de idade. E eu joguei no chão.
Não tive notícias de Marie, até hoje não sei se ela se lembra de mim, se arrumou uma família. Não sei de nada. Hoje com 27 anos, ainda consigo me lembrar do bilhete que deixei em cima do meu travesseiro para que Marie encontrasse.
“Me perdoe, Marie, eu deixei o copo azul cair no chão. E ele era de vidro. Quando colei os pedacinhos eu sabia que ia faltar algum, sempre machuca os meus lábios quando bebo alguma coisa naquele copo por conta desse pedacinho que falta. Eu não acho que você vai entender isso. Eu amo você, floco de neve. Sua, eternamente sua, Jolie.”
Irmã Pauline não me procurou, no fundo eu acho que ela já sabia que eu precisava seguir a minha vida sozinha. Eu não derrubei apenas o copo azul de Marie no chão naquela noite, o meu coração era o suco dentro do copo. Sangue diluído em água.
E hoje, todas as noites, quando meu marido se vira para o lado oposto ao meu, dormindo profundamente, eu posso ver perfeitamente o rosto de Marie na minha frente. Seus traços delicados. Imagino como ela estaria hoje. Deve ter ficado uma menina linda. Perfeita. Penso se ela continuou na França ou se foi para Nova York, talvez tenha ido para a Inglaterra, que tinha mais a ver com ela. Penso se ela chegou a realizar seus sonhos...
Nunca permiti que alguém quebrasse a barreira que eu criei. Ninguém derrubaria o meu copo azul no chão. Porque é vidro. Vidro quebra. Eu não queria quebrar mais copos azuis. De vez em quando eu ainda ouço a voz doce da Irmã Pauline brigando comigo por eu ter jogado o copo no chão e consigo sorrir.
Pois foi quando eu aprendi que qualquer coisa pode ser remendada, mas você sempre vai sentir as marcas de algo que não é mais inteiro, completo. Marie com certeza conseguiu consertar o coração dela, mas ela com certeza não deixou que mais ninguém o segurasse. E eu jamais deixaria que alguém segurasse o meu.
Todos podem ser a Jolie de cinco anos de idade. Todos podem jogar o copo azul de vidro no chão de propósito mesmo sabendo que vai quebrar.
E toda noite antes de dormir, eu bebo água naquele copo. Tento cuidar dele para que não caia novamente, eu não conseguiria juntar os pedaços sem a ajuda da Irmã Pauline.

quarta-feira, 23 de março de 2011


O tempo tem passado tão devagar e enquanto estou sentado pensando em você, a vida corre e eu fico aqui na mesma. E sabendo que ter você é bem difícil, eu vou imaginar você comigo. Eu decidi estar assim e enquanto isso me fizer bem eu vou aproveitar, porque acima de tudo o que eu quero é ser feliz. Você não falta na minha vida, falta no amor. Eu posso te esperar, é o que eu estou fazendo: alimento um desejo que talvez nunca seja satisfeito, não por minha culpa. Se de uma coisa eu tenho certeza é que eu te quis demais, e mais que isso eu fiz de tudo pra te ter comigo. O que eu pude fazer foi tentar, se não tive resultado eu tenho que aceitar. Se um dia você se arrepender eu vou te entender, mesmo que isso não signifique o amor que eu ja senti e que não foi correspondido.

terça-feira, 22 de março de 2011

Adeus.




Já não se encantarão os meus olhos nos teus olhos,
já não se adoçará junto a ti a minha dor.

Mas para onde vá levarei o teu olhar
e para onde caminhes levarás a minha dor.

Fui teu, foste minha. O que mais? Juntos fizemos
uma curva na rota por onde o amor passou.

Fui teu, foste minha. Tu serás daquele que te ame,
daquele que corte na tua chácara o que semeei eu.

Vou-me embora. Estou triste: mas sempre estou triste.
Venho dos teus braços. Não sei para onde vou.

...Do teu coração me diz adeus uma criança.
E eu lhe digo adeus.


Pablo Neruda

sábado, 19 de março de 2011

But baby when you get back...

Ele chegou por volta de 12:43, ou mais. Eu havia adormecido no sofá, com a televisão ligada. Algo que ele sempre me alertava à não fazer. Haviam várias latas de cerveja e energético sobre a mesinha de centro, que ele tanto dizia para não colocar as latas geladas ali, para que o vidro não se estragasse. Havia uma garrafa de vodka pela metade caída ao lado do sofá e um pouco da bebida havia derramado em seu tapete mais caro. A cozinha estava um caos completo, eu havia queimado uma de suas panelas novas e provavelmente dos seus três jogos de copos, pelo menos um estava faltando. Eu não fiz as compras da semana e provavelmente o queijo que eu deixei fora da geladeira no dia em que ele foi viajar havia estragado já. Em cima da mesa, a caixa de pizza, com metade dela lá dentro, quando ele me disse que eu deveria guarda na geladeira, mas acho que não dei muita atenção à este detalhe. A cama também estava bagunçada, porque eu não tinha paciência alguma de alinhar o lençol do modo que ele gostava. Ele dispensou a empregada, porque ainda não confiava o suficiente em mim para deixar aquela ruiva e eu sozinhos na mesma casa. Bom, talvez eu não confiasse muito em mim quando eu estava bêbado também. Mas eu cuidei da casa dele como se fosse a minha.

Bem, o gato… Eu juro que ele tinha um gato, mas eu não consegui encontrá-lo mais desde o terceiro dia. Também, foi só no terceiro dia que eu me lembrei que água da criatura precisava ser trocada. Mas ele deve estar por aí… Certo? Acho que o banheiro ainda está intacto. Ele deve estar molhado e eu também devo ter deixado uma toalha molhada em cima da cama. Mas ele não deveria se preocupar, uma vez que eu havia tirado o lençol branco de seda que ele tanto gostava. Não me lembro exatamente onde eu o guardei, mas acho que coloquei na máquina de lavar, junto com meu hoodie vermelho que estava meio sujo. As roupas ainda estão lá na máquina, eu não sei lidar direito com aquela coisa e eu fiquei com medo de ligar para a empregada e ele brigar comigo.

A casa dele refletia o caos que eu havia causado em toda sua vida desde que eu cheguei nela. Mas uma vez que em cima de toda aquela bagunça em cima da mesinha do telefone, haviam os meus sinceros pedidos de desculpa pela bagunça, talvez tudo fosse ficar bem. Acho que ele nem se importaria em saber que eu dormi com a porta destrancada em várias noites, não é mesmo? Por volta de 12:59 eu senti um beijo sutil em minha bochecha e me mexi um pouco, sem abrir os olhos, o fiz aos poucos, abrindo um sorriso ao ver o meu amor ali, parado. Mas quase ao mesmo instante eu arregalei os olhos, lembrando da bagunça que eu havia deixado em sua casa. Eu olhei para ele, com aquele olhar caído de cachorro que não tem dono e ele sorriu, estendendo à mão para mim.

“Se você não quebrou a minha cama, talvez nós possamos deitar nela. Eu estava com saudades.”

Foi o que ele disse. E eu me levantei com um sorriso, o abraçando forte pela cintura e deixando um beijo em sua testa. Ele sabia que eu nunca mudaria. E que eu sempre seria uma bagunça. Enquanto ele tratava de me organizar e eu só conseguia me manter arrumadinho quando ele estava por perto. Não adiantava discutir, ele já havia aprendido que nós só nos completávamos pelo fato de que eu bagunçava, ele arrumava. Eu não sabia, ele sabia. Eu sabia, ele não sabia. Nós nos completávamos, pelo simples fato de que eu era o que ele não era e ele era o que eu jamais poderia ser na vida. E eu o amava tanto que por mais que nós fôssemos tão diferentes, chegávamos a ser iguais. Nossas diferenças eram diferentemente idênticas.

“Você não sabe o quanto isso aqui vira um inferno sem você.” Eu disse por fim, deixando um selinho em seus lábios. Ele riu, quase debochado. Aquele garoto adorava debochar de mim.

“Eu estou vendo. Amanhã tudo volta ao normal.” Ele sorriu, daquele modo que para mim significava mais que o universo inteiro. E nós fomos… Dormir no quarto de hóspedes, o único lugar onde eu não havia sequer aberto a porta naquela semana. A cama era pequena, mas esse não era um problema, uma vez que nós havíamos aprendido como dois corpos podem dividir o mesmo espaço em perfeita harmonia.

E eu poderia dizer com toda a certeza do mundo que nós éramos perfeitos demais para qualquer outra pessoa que não fossemos nós mesmos. Ele para mim e eu para ele. Porque era assim que deveria ser.

“You just get me like I’ve never been gotten before
Like I’ve never been gotten before.”

Maybe I'm just too old to dream and all my hope seems to slowly fade away and vanish in the air. You're my dream, it's true.

But we always have to wake up from our dreams, even in our deepest sleep. We always wake up and keep dreaming awake is foolish. So I'm just almost giving up since you're not trying to make any easier for us.

I don't care if you don't care.

sexta-feira, 18 de março de 2011

"Are you dying to believe I can't go on without you?"


I was buried alive
I came back to haunt you
Are you dying to believe
I can't go on without you?
All we are is too fast for love.

We're too young
I hate to love you
The night's gone
And you're gone too
But you can't be missed
If you never go away.

It's the end of a broken heart
I went on without you
I was lost from the start
I did what I had to
All we are is too fast for love.

You don't know what I've seen
You can see that I've been drownin'
Without you
And I don't know where you've been
But I can wash your sins away.

But you're still lying to me...

quinta-feira, 17 de março de 2011

quarta-feira, 16 de março de 2011

Outono, inverno, verão... E teus olhos.

Quero apenas cinco coisas..
Primeiro é o amor sem fim
A segunda é ver o outono
A terceira é o grave inverno
Em quarto lugar o verão
A quinta coisa são teus olhos
Não quero dormir sem teus olhos.
Não quero ser... sem que me olhes.
Abro mão da primavera para que continues me olhando.

— Pablo Neruda

A Dança ~ Pablo Neruda

Não te amo como se fosse rosa de sal, topázio
ou flecha de cravos que propagam o fogo:
te amo secretamente, entre a sombra e a alma.

Te amo como a planta que não floresce e leva
dentro de si, oculta, a luz daquelas flores,
e graças a teu amor vive escuro em meu corpo
o apertado aroma que ascender da terra.

Te amo sem saber como, nem quando, nem onde,
te amo directamente sem problemas nem orgulho:
assim te amo porque não sei amar de outra maneira,

Se não assim deste modo em que não sou nem és
tão perto que a tua mão sobre meu peito é minha
tão perto que se fecham teus olhos com meu sonho.

Poeminha Amoroso

Este é um poema de amor
tão meigo, tão terno, tão teu...
É uma oferenda aos teus momentos
de luta e de brisa e de céu...
E eu,
quero te servir a poesia
numa concha azul do mar
ou numa cesta de flores do campo.
Talvez tu possas entender o meu amor.
Mas se isso não acontecer,
não importa.
Já está declarado e estampado
nas linhas e entrelinhas
deste pequeno poema,
o verso;
o tão famoso e inesperado verso que
te deixará pasmo, surpreso, perplexo...
eu te amo, perdoa-me, eu te amo...

Seja.

Não sei se a vida é curta ou longa para nós, mas sei que nada do que vivemos tem sentido, se não tocarmos o coração das pessoas.
Muitas vezes basta ser: colo que acolhe, braço que envolve, palavra que conforta, silencio que respeita, alegria que contagia, lágrima que corre, olhar que acaricia, desejo que sacia, amor que promove.
E isso não é coisa de outro mundo, é o que dá sentido à vida. É o que faz com que ela não seja nem curta, nem longa demais, mas que seja intensa, verdadeira, pura enquanto durar.

— Cora Coralina

terça-feira, 15 de março de 2011

Tudo pela metade...


Eu admiro o que não presta
Eu escravizo quem eu gosto
Eu não entendo
Eu trago o lixo para dentro
Eu abro a porta para estranhos
Eu cumprimento
Eu quero aquilo que não tenho
Eu tenho tanto a fazer
Eu faço tudo pela metade
Eu não não percebo
Eu falo muito palavrão
Eu falo muito mal
Eu falo muito mesmo sem saber o que estou falando
Eu falo muito bem, eu minto.

A Útima Crônica

A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever. A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num acidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: "assim eu quereria o meu último poema". Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica.

Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo mais que matar a fome.


Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o pedido do homem e depois se afasta para atendê-lo. A mulher suspira, olhando para os lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A meu lado o garçom encaminha a ordem do freguês.


O homem atrás do balcão apanha a porção do bolo com a mão, larga-o no pratinho - um bolo simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena fatia triangular. A negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente. Por que não começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e filha, obedecem em torno à mesa um discreto ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais os observa além de mim.


São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e sopra com força, apagando as chamas. Imediatamente põe-se a bater palmas, muito compenetrada, cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos: "Parabéns pra você, parabéns pra você..." Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa. A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela com ternura - ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da celebração. Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido - vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso.


Assim eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso.


— Fernando Sabino

Bilhete - Mario Quintana

Se tu me amas, ama-me baixinho
Não o grites de cima dos telhados
Deixa em paz os passarinhos
Deixa em paz a mim!
Se me queres,
enfim,
tem de ser bem devagarinho, Amada,
que a vida é breve, e o amor mais breve ainda...

"A arte de viver é simplesmente a arte de conviver ... simplesmente, disse eu? Mas como é difícil!" - Mario Quintana

segunda-feira, 14 de março de 2011

QUIZ: Are you really "soul mates"?

A quick and easy 20 question quiz to help you determine if you and another are soul mates.

Whether it is a love relationship or a platonic friendship some connections feel deeper than others, like they have been there forever. Sometimes it is just as if you "click" and other times it is like you've known one another your entire lives but the feeling is as eerie and it is cool. Are you and another connected through time and space? Have you known eachother before? Take our "Are you soul mates?" quiz to explore the seemingly impossible.

Your score is 50. Soul mates or not your connection is uncanny. It is too hard to tell whether or not this relationship is part of destiny's grand design but it is undeniably special. Count your lucky stars that you have such a great connection with another person.


I'm such a superstitious freak...

domingo, 13 de março de 2011

Don’t say that it’s easy, the hardest part is leaving.

Enfermo do inferno


Suas mãos estão suadas. Seu coração está batendo forte, batendo rápido, batendo sem ritmo. Seus pulmões buscam por uma quantidade de ar muito maior que a quantidade que você é capaz de puxar para dentro a cada vez que você inspira. Isso tudo te faz ofegar. E como se não bastasse, tem lágrimas nos seus olhos. Tem lágrimas nos seus olhos e um buraco no seu peito, junto com um nó na sua garganta. Além disso, existem calafrios correndo pela sua espinha. Você está doente. Mas felizmente você está vivo. Você está enfermo dessa droga inútil que eles chamam de amor. Vá tratar-se e me avise se encontrar um bom profissional que possa curar essa maldita dor. Só por favor, não me conte se essa doença evoluir, não quero saber se você ficou louca de verdade, eu não estou buscando informações sobre pessoas que evoluíram essa doença do amor. Que foram direto do cinema de mãos dadas ao abraço da camisa de força do sanatório. Por favor, não me mantenha informada se de repente seus telefonemas no meio da noite forem substituídos por pílulas para que consigas dormir sem chorar. Tu contraíste essa doença do amor há pouco menos de um mês e eu já a possuo há anos, não quero saber quanto tempo falta para que ela evolua. Esse câncer vai me levar a vida e eu não quero saber ainda quanto tempo eu tenho. Você não tem nenhum direito de me informar, eu não quero saber. Mantenha longe de mim as suas mãos suadas e seu coração eufórico a beira de um infarto. Respire um ar que não seja o meu, por favor, já estou tentando inspirar bem mais do que posso. E não me faça mais perguntas, eu também não tenho direito algum de lhe informar que você está doente. Não posso lhe dizer que esse sorriso irá se transformar nessas lágrimas que estão no meu rosto. Não posso, em momento algum, dizer que estás olhando para mim como se eu fosse um espelho do teu futuro. Não posso também me responsabilizar por teres se deixado contaminar por esse vírus estúpido. Deixastes que lhe injetassem essa droga direto na veia então agora espere. Apenas espere. Tenho ouvido isso por não sei quanto tempo, mas você ainda está no início. Não venha aqui conversar, estou tentando me preocupar com meus calafrios. Não me diga nada a respeito dessa doença, mas me avise se encontrar a cura.

"Marvelous Things"

Eu me sentei no chão daquela sala completamente vazia. Observando minuciosamente cada canto eu podia perceber que em todos aqueles anos nada havia mudado. Ainda era a mesma sala. Se eu fechasse meus olhos, eu ainda podia ver naquele mesmo canto esquerdo o rádio que costumava estar ali. E a televisão também juntamente com o DVD. Mantive meus olhos fechados, apenas para poder ver – e sentir – mais do que aquilo. Meu corpo vestia uma peça de roupa sua, uma jaqueta, cuja eu nunca devolvi. Esperei você ir embora, apenas para dizer que havia esquecido. Mas eu nunca esqueci. Eu apenas não podia aceitar que me separaria de você, eu acreditava que aquilo era a parte de você em mim, a parte de você que havia ficado em mim.

Eu sorri, ainda com meus olhos fechados. Eu podia ver claramente o seu sorriso, é como se fosse ontem. Eu não via só o seu sorriso, eu via também o dos nossos amigos. Eu nos via reunidos aqui, no chão dessa sala novamente. Dividíamos cigarros, bebíamos. E nós tínhamos apenas 16 anos... Era sempre essa casa, sempre essa. E cada canto me faz ter uma pequena lembrança. É como se apenas meu espírito tivesse se soltado do meu corpo e caminhasse com leveza por cada cômodo dessa casa. Ele visita o quarto, eu lembro do que nós fizemos nele. E são tantas lembranças. Eu não consigo me perdoar até hoje por ter te deixado ir embora... Por ter te deixado ir sem nunca te deixar saber que você era mais que um amigo.

Eu era ingênua. Todos nós éramos. Ninguém era de ninguém naquela época, a gente não ligava. Que tivessem ciúmes. Que eu tivesse. Que você tivesse. Mas a gente se calava. Talvez você gostasse de mim, bem mais do que eu pensava. Mas eu nunca iria saber. Nós éramos apenas crianças. Crianças brincando de ser gente grande. A gente brincava como se fossemos adultos. Mas já fazem cinco anos que cada um se perdeu pelo mundo e agora eu posso apenas sentir. Eu posso ouvir as músicas. Eu posso ouvir os sons das risadas. Cinco anos. Em cinco anos...

Eu abracei meu corpo com mais força. Me lamentei que essa jaqueta não tivesse mais o seu cheiro, não como tinha quando eu sutilmente a “roubei” de você. E era só um pretexto pra ter o seu cheiro comigo, pra te sentir comigo. Pra dormir com você. Pra dormir... porque eu simplesmente adorava te ver dormir. E você nunca soube disso. E eu me lamento. Eu me lamento tanto... Naquela época tudo era tão proibido. Talvez porque nós fôssemos crianças. Mas apenas pra dormir com você, isso significava quebrar um milhão de regras, mas que deixavam de existir. E nós quebramos. Tantas e tantas vezes. Eu não me importava, só pra poder te ver dormir.

Meu corpo leve, meu espírito visitando cada cômodo da casa. A saudade apertada. Me abraço forte, imaginando seu abraço, do qual eu tanto gostava. Mas a sua falta não é a única que eu sinto. Eu sinto a falta de todos. Éramos todos amigos. Irmãos, pra dizer a verdade. Não era como se fosse errado ou fora das regras se demonstrássemos nosso amor um pelo outro. Todos nós. Porque era permitido. Mesmo que o ciúmes as vezes falasse mais alto, mas ainda sim, era divertido. Ah, como era...

Depois que cada um cresce, depois que cada um se dispersa. Nós tínhamos tantos planos! Nós iríamos morar juntos, todos os quatro. Éramos a parte inseparável, achávamos que todo mundo passaria, que todo mundo iria pra um lado e que nós estaríamos sempre juntos. Que aquele seria sempre nosso grupo fechado. Essa sala vazia acusa nossos sonhos, soprados pelo tempo. Sonhos de adolescente, quando ainda acreditávamos. E agora o que sobrou pra gente além de lembranças?

Eu me abraço mais forte, meu peito se aperta, mas eu ainda não quero abrir meus olhos. Eu não tenho coragem de visitar outro cômodo que não seja essa sala. Essa sala já me traz todas as lembranças que o resto da casa poderia avivar ainda mais. Beijos, abraços, discussões bobas, bebidas, músicas, risadas... E tudo isso se perdeu entre os anos. E esses cinco anos. Esses cinco anos! Eu corri pra cá, quando soube que a casa estava vazia. Desde que o primeiro de nós se dispersou, o primeiro de nós se foi... E depois o próximo. E o próximo. E depois de cinco anos, estou sozinha aqui. Sentada no chão da nossa sala, agora vazia. Não tem música, não tem regras que possamos quebrar. Não tem nada. Não tem vocês. Só tenho as lembranças. E essa jaqueta. Eu me aperto um pouco mais, na esperança de ainda depois de cinco anos, poder sentir seu perfume nessa jaqueta. Eu consigo sentir, mesmo sabendo que o cheiro não está mais ali. Mas minha memória se recorda perfeitamente.

Eu lembro beijos, eu lembro canções, eu lembro cheiros, eu lembro sabores. Eu lembro de absolutamente tudo. E com meus olhos bem fechados, eu posso viajar no tempo, viajar por essa casa, eu posso ver todos vocês aqui, novamente. Eu retorno. Aterrisso rapidamente de volta ao meu corpo. Abro os olhos, olho em volta. A casa totalmente vazia, triste, sem vida. Dói muito mais do que eu imaginava voltar aqui depois de cinco anos. Eu me levanto. Ajeito a jaqueta em meu corpo e dou mais uma olhada ao redor, apenas pra memorizar a sala, apenas mais uma vez. A última vez que eu voltaria a nossa sala. A última vez que eu viria aqui. E então aquela lágrima presa entre meus olhos, minha garganta e meu nariz caiu. A despedida. O desapego. Nós quatro. Nossos sonhos. E tudo isso fica ali, na sala, bem guardado. E também fica aqui dentro. Ninguém poderia tirar isso de mim, nem em um milhão de anos.

Caminho até a porta e não olho para trás mais uma vez. Continuo olhando para a frente, no caminho que devo seguir, nunca olhando para trás. Então eu corro. Dou as mãos para ela, eu me lembro quando corríamos assim, ainda que fosse só até a esquina. Eu posso vê-los correndo adiantados, à nossa frente. Eu corro em direção à liberdade de todas essas lembranças. Corro em direção à nossa liberdade. A cada passo, imagino onde cada um de vocês possa estar agora. Eu corro, e não me importo com a falta de ar. Todos aqueles cigarros, quando eu tinha apenas dezesseis anos. Mas eu continuo correndo. Abro meus braços, deixo as lágrimas soltas, mas eu dou risada. Eu poderia abraçar o mundo agora. Eu rio em nossa homenagem. Nós, os irmãos, os amigos, os amantes. Os cúmplices. Nós. E toda a vida que nós vivemos juntos. Eu sinto o vazio, mas sinto a felicidade de ter participado desses momentos. Eu me sinto mal, mas ao mesmo tempo me sinto perfeitamente bem. Eu me sinto nova. Eu me sinto velha. Eu me sinto totalmente livre. Livre. Porque foi com vocês que eu aprendi o que era a liberdade, o que era o amor, o que era a partilha. O que era a amizade.

E isso tudo ficou guardado, ficou na memória, no coração, nos sonhos. É como se tudo não tivesse passado de um sonho. Um sonho. Nós éramos sonhadores. Nós éramos Os Sonhadores. Isso nunca vai acabar. Essa parte sempre vai estar viva dentro de nós. Nós, Os Sonhadores. Nós. Somente nós. E eu ainda tenho suas risadas, seus perfumes, seus rostos. Estão todos guardados aqui. Junto com tantas coisas que eu deveria ter dito. Está tudo aqui, pra onde quer que eu vá. Pra onde quer que vocês vão. Isso sempre vai fazer parte de nós. Sempre.

(For N, J, G and our memories)

“Can I kiss you at the top?”

“What would your mother think if she knew you were seeing a lapsed Catholic?”
“Ask me to bring you home,” Johnny said promptly, “so she could slip you a few tracts.”
She stopped, still holding his hand. “Would you like to bring me to your house?” she asked, looking at him closely.
Johnny’s long, pleasant face became serious. “Yeah,” he said. “I’d like you to meet them … and vice versa.”
“Why?”
“Don’t you know why?” he asked her gently, and suddenly her throat closed and her head throbbed as if she might cry’ and she squeezed his hand tightly.
“Oh Johnny, I do like you.”
“I like you even more than that,” he said seriously.
“Take me on the Ferris wheel,” she demanded suddenly, smiling. No more talk like this until she had a chance to consider it, to think where it might be leading. “I want to go up high where we can see everything.”
“Can I kiss you at the top?”
“Twice, if you’re quick.”
He allowed her to lead him to the ticket booth, where he surrendered another dollar bill. As he paid he told her, “When I was in high school, I know this kid who worked at the fair, and he said most of the guys who put these rides together are dead drunk and they leave off all sorts of…”
“Go to hell,’ she said merrily, “nobody lives forever.”
“But everybody tries, you ever notice that?” he said, following her into one of the swaying gondolas.
As a matter of fact he got to kiss her several times at the top, with the October wind ruffling their hair and the midway spread out below them like a glowing clockface in the dark.


The Dead Zone, Stephen King

O dia que Júpiter encontrou Saturno

Foi a primeira pessoa que viu quando entrou. Tão bonito que ela baixou os olhos, sem querer querendo que ele também a tivesse visto. Deram-lhe um copo de plástico com vodka, gelo e uma casquinha de limão. Ela triturou a casquinha entre os dentes, mexendo o gelo com a ponta do indicador, sem beber. Com a movimentação dos outros, levantando o tempo todo para dançar rocks barulhentos ou afundar nos quartos onde rolavam carreiras e baseados, devagarinho conquistou uma cadeira de junco junto a janela. A noite clara lá fora estendida sobre Henrique Schaumann, a avenida poncho & conga, riu sozinha. Ria sozinha quase o tempo todo, uma moça magra querendo controlar a própria loucura, discretamente infeliz. Molhou os lábios na vodka tomando coragem de olhar para ele, um moço queimado de sol e calças brancas com a barra descosturada. Baixou outra vez os olhos, embora morena também, e suspirou soltando os ombros, coluna amoldando-se ao junco da cadeira. Só porque era sábado e não ficaria, desta vez não, parada entre o som, a televisão e o livro, atenta ao telefone silencioso. Sorriu olhando em volta, muito bem, parabéns, aqui estamos.

Não que estivesse triste, só não sentia mais nada.

Levemente, para não chamar atenção de ninguém, girou o busto sobre a cintura, apoiando o cotovelo direito sobre o peitoril da janela. Debruçou o rosto na palma da mão, os cabelos lisos caíram sobre o rosto. Para afastá-los, ela levantou a cabeça, e então viu o céu tão claro que não era o céu normal de Sampa, com uma lua quase cheia e Júpiter e Saturno muito próximos. Vista assim parecia não uma moça vivendo, mas pintada em aquarela, estatizada feito estivesse muito calma, e até estava, só não sentia mais nada, fazia tempo. Quem sabe por que não evidenciava nenhum risco parada assim, meio remota, o moço das calças brancas veio se aproximando sem que ela percebesse.

Parado ao lado dela, vistos de dentro, os dois pintados em aquarela - mas vistos de fora, das janelas dos carros procurando bares na avenida, sombras chinesas recortadas contra a luz vermelha.

E de repente o rock barulhento parou e a voz de John Lennon cantou every day, every way is getting better and better. Na cabeça dela soaram cinco tiros. Os olhos subitamente endurecidos da moça voltaram-se para dentro, esbarrando nos olhos subitamente endurecidos do moço. As memórias que cada um guardava, e eram tantas, transpareceram tão nitidamente nos olhos que ela imediatamente entendeu quando ele a tocou no ombro.

- Você gosta de estrelas?

- Gosto. Você também?

- Também. Você está olhando a lua?

- Quase cheia. Em Virgem.

- Amanhã faz conjunção com Júpiter.

- Com Saturno também.

- Isso é bom?

- Eu não sei. Deve ser.

- É sim. Bom encontrar você.

- Também acho.

(Silêncio)

- Você gosta de Júpiter?

- Gosto. Na verdade "desejaria viver em Júpiter onde as almas são puras e a transa é outra".

- Que é isso?

- Um poema de um menino que vai morrer.

- Como é que você sabe?

- Em fevereiro, ele vai se matar em fevereiro.

(Silêncio)

- Você tem um cigarro?

- Estou tentando parar de fumar.

- Eu também. Mas queria uma coisa nas mãos agora.

- Você tem uma coisa nas mãos agora.

- Eu?

- Eu.

(Silêncio)

- Como é que você sabe?

- O quê?

- Que o menino vai se matar.

- Sei de muitas coisas. Algumas nem aconteceram ainda.

- Eu não sei nada.

- Te ensino a saber, não a sentir. Não sinto nada, já faz tempo.

- Eu só sinto, mas não sei o que sinto. Quando sei, não compreendo.

- Ninguém compreende.

- Às vezes sim. Eu te ensino.

- Difícil, morri em dezembro. Com cinco tiros nas costas. Você também.

- Também, depois saí do corpo. Você já saiu do corpo?

(Silêncio)

- Você tomou alguma coisa?

- O quê?

- Cocaína, morfina, codeína, mescalina, heroína, estenamina, psilocibina, metedrina.

- Não tomei nada. Não tomo mais nada.

- Nem eu. Já tomei tudo.

- Tudo?

- Cogumelos têm parte com o diabo.

- O ópio aperfeiçoa o real.

- Agora quero ficar limpa. De corpo, de alma. Não quero sair do corpo.

(Silêncio)

- Acho que estou voltando. Usava saias coloridas, flores nos cabelos.

- Minha trança chegava até a cintura. As pulseiras cobriam os braços.

- Alguma coisa se perdeu.

- Onde fomos? Onde ficamos?

- Alguma coisa se encontrou.

- E aqueles guizos?

- E aquelas fitas?

- O sol já foi embora.

- A estrada escureceu.

- Mas navegamos.

- Sim. Onde está o Norte?

- Localiza o Cruzeiro do Sul. Depois caminha na direção oposta.

(Silêncio)

- Você é de Virgem?

- Sou. E você, de Capricórnio?

- Sou. Eu sabia.

- Eu sabia também.

- Combinamos: terra.

- Sim. Combinamos.

(Silêncio)

- Amanhã vou embora para Paris.

- Amanhã vou embora para Natal.

- Eu te mando um cartão de lá.

- Eu te mando um cartão de lá.

- No meu cartão vai ter uma pedra suspensa sobre o mar.

- No meu não vai ter pedra, só mar. E uma palmeira debruçada.

(Silêncio)

- Vou tomar chá de ayahuasca e ver você egípcia. Parada do meu lado, olhando de perfil.

- Vou tomar chá de datura e ver você tuaregue. Perdido no deserto, ofuscado pelo sol.

- Vamos nos ver?

- No teu chá. No meu chá.

(Silêncio)

- Quando a noite chegar cedo e a neve cobrir as ruas, ficarei o dia inteiro na cama pensando em dormir com você.

- Quando estiver muito quente, me dará uma moleza de balançar devagarinho na rede pensando em dormir com você.

- Vou te escrever carta e não te mandar.

- Vou tentar recompor teu rosto sem conseguir.

- Vou ver Júpiter e me lembrar de você.

- Vou ver Saturno e me lembrar de você.

- Daqui a vinte anos voltarão a se encontrar.

- O tempo não existe.

- O tempo existe, sim, e devora.

- Vou procurar teu cheiro no corpo de outra mulher. Sem encontrar, porque terei esquecido. Alfazema?

- Alecrim. Quando eu olhar a noite enorme do Equador, pensarei se tudo isso foi um encontro ou uma despedida.

- E que uma palavra ou um gesto, seu ou meu, seria suficiente para modificar nossos roteiros.

(Silêncio)

- Mas não seria natural.

- Natural é as pessoas se encontrarem e se perderem.

- Natural é encontrar. Natural é perder.

- Linhas paralelas se encontram no infinito.

- O infinito não acaba. O infinito é nunca.

- Ou sempre.

(Silêncio)

- Tudo isso é muito abstrato. Está tocando "Kiss, kiss, kiss". Por que você não me convida para dormirmos juntos.

- Você quer dormir comigo?

- Não.

- Porque não é preciso?

- Porque não é preciso.

(Silêncio)

- Me beija.

- Te beijo.

Foi a última pessoa que viu ao sair. Tão bonita que ele baixou os olhos, sem saber sabendo que ela também o tinha visto. Desceu pelo elevador, a chave do carro na mão. Rodou a chave entre os dedos, depois mordeu leve a ponta metálica, amarga. Os olhos fixos nos andares que passavam, sem prestar atenção nos outros que assoavam narizes ou pingavam colírios. Devagarinho, conquistou o espaço junto à porta. Os ruídos coados de festas e comandos da madrugada nos outros apartamentos, festas pelas frestas, riu sozinho. Ria sozinho quase sempre, um moço queimado de sol, com a barra branca das calças descosturadas, querendo controlar a própria loucura, discretamente infeliz.

Mordeu a unha junto com a chave, lembrando dela, uma moça magra de cabelos lisos junto à janela. Baixou outra vez os olhos, embora magro também. E suspirou soltando os ombros, pés inseguros comprimindo o piso instável do elevador. Só porque era sábado, porque estava indo embora, porque as malas restavam sem fazer e o telefone tocava sem parar. Sorriu olhando em volta.

Não que estivesse triste, só não compreendia o que estava sentindo.

Levemente, para não chamar a atenção de ninguém, apertou os dedos da mão direita na porta aberta do elevador e atravessou o saguão de lado, saindo para a rua. Apoiou-se no poste da esquina, o vento esvoaçando os cabelos, e para evitá-lo ele então levantou a cabeça e viu o céu. Um céu tão claro que não era o céu normal de Sampa, com uma lua quase cheia e Júpiter e Saturno muito próximos. Visto assim parecia não um moço vivendo, mas pintado num óleo de Gregório Gruber, tão nítido estava ressaltado contra o fundo da avenida, e assim estava, mas sem compreender, fazia tempo. Quem sabe por que não evidenciava nenhum risco, a moça debruçou-se na janela lá em cima e gritou alguma coisa que ele não chegou a ouvir. Parado longe dela, a moça visível apenas da cintura para cima parecia um fantoche de luva, manipulado por alguém escondido, o moço no poste agitando a cabeça, uma marionete de fios, manipulada por alguém escondido.

De repente um carro freou atrás dele, o rádio gritando "se Deus quiser, um dia acabo voando". Na cabeça dele soaram cinco tiros. De onde estava, não conseguiria ver os olhos da moça. De onde estava, a moça não conseguiria ver os olhos dele. Mas as memórias de cada um eram tantas que ela imediatamente entendeu e aceitou, desaparecendo da janela no exato instante em que ele atravessou a avenida sem olhar para trás.


-- Caio Fernando Abreu