quinta-feira, 31 de março de 2011

O Copo de Vidro Azul

Quando eu tinha cinco, quase seis anos de idade alguém me ensinou uma coisa. Eu era apenas uma órfã, nem meus pais quiseram me suportar em casa e me largaram em um orfanato logo que eu nasci. Eu nunca soube o que era carinho de mãe, bronca de pai e jantar em família. Eu nunca conheci nenhum tipo de amor, talvez. E tudo que sei, eu devo à Irmã Pauline. Quando eu tinha lá pelos meus cinco ou seis anos, eu nem entendia muita coisa de nada. Mas eu me lembro perfeitamente bem, como se fosse ontem. Eu tinha um copo de vidro em minhas mãos, ele era de vidro azul, detalhado. Eu bebia suco. Suco de morango, vendo de fora ficava meio marrom, uma cor meio estranha. Eu perguntei para Irmã Pauline o que aconteceria se eu soltasse o copo no chão.
“Vai quebrar.” Ela respondeu. Era um pouco óbvio, mas eu era criança e não entendia muito bem. Perguntei novamente o que aconteceria e com toda a paciência do mundo, ela me respondeu com um sorriso. “Vai quebrar, é de vidro.”
Minha cabeça já perversa desde aqueles tempos matutou. Olhei bem nos olhos da Irmã e soltei o copo no chão sem piedade. Ele caiu e estilhaçou-se no chão, derramando o resto do líquido vermelho dali de dentro. Parecia sangue diluído em água, no meio de milhares de caquinhos azuis. Meus olhos também eram azuis bem fortes, as pessoas costumavam elogiá-los. Porém nunca serviram para que alguém me adotasse.
Irmã Pauline me castigou naquele dia.
“Eu te disse que o copo era de vidro, menina!” Ela disse brava. Nunca tinha visto a Irmã Pauline brava daquele jeito e ainda mais comigo. Ela me fez juntar cada caquinho do copo, eu me cortei, mas ela não ficou com pena de mim, colocou um curativo no meu dedo e me fez juntar todos os pedacinhos do copo. E depois me fez colar.
Ficou péssimo, pra ser sincera. E ela me fez beber água naquele copo. Ele arranhava um pouco os lábios da gente e machucava, mas ela não me deixou jogá-lo fora.
Bem, eu ainda tenho esse copo guardado.
Com 17 anos eu descobri que não era só o copo de vidro azul que não poderia voltar ao normal depois de quebrado. Eu fugi do orfanato, porque eu estava cansada. Ninguém nunca iria me adotar e eu não conseguia mais ficar naquele lugar. Meu problema não foi fugir, mas sim abandonar Marie. Eu não sabia o que nós fazíamos, mas crescemos juntas. Deveríamos nos tratar como irmãs e com todos aqueles ensinamentos religiosos eu tenho certeza que nossas almas iriam direto pro inferno desde o primeiro dia em que eu dei aquele beijo em Marie e a fiz se apaixonar por mim. Nunca vou esquecer a frase que Marie disse para mim uma vez:
“Meu coração está em suas mãos, Jolie.”
Nunca me senti culpada por amar e ser amada de volta por Marie. Pensava na Irmã Pauline e no sermão que eu levaria por amar daquela forma. Por amar uma menina. E no fundo eu sei que Marie se sentia culpada por me amar. Eu nunca tive medo. Talvez porque Marie era tão assustada, assim como uma gatinha, que eu tinha que mostrar pra ela que alguém a protegeria. Mas naquela noite em que eu fugi, eu sei que o coração de Marie era o copo nas mãos da Jolie aos seis anos de idade. E eu joguei no chão.
Não tive notícias de Marie, até hoje não sei se ela se lembra de mim, se arrumou uma família. Não sei de nada. Hoje com 27 anos, ainda consigo me lembrar do bilhete que deixei em cima do meu travesseiro para que Marie encontrasse.
“Me perdoe, Marie, eu deixei o copo azul cair no chão. E ele era de vidro. Quando colei os pedacinhos eu sabia que ia faltar algum, sempre machuca os meus lábios quando bebo alguma coisa naquele copo por conta desse pedacinho que falta. Eu não acho que você vai entender isso. Eu amo você, floco de neve. Sua, eternamente sua, Jolie.”
Irmã Pauline não me procurou, no fundo eu acho que ela já sabia que eu precisava seguir a minha vida sozinha. Eu não derrubei apenas o copo azul de Marie no chão naquela noite, o meu coração era o suco dentro do copo. Sangue diluído em água.
E hoje, todas as noites, quando meu marido se vira para o lado oposto ao meu, dormindo profundamente, eu posso ver perfeitamente o rosto de Marie na minha frente. Seus traços delicados. Imagino como ela estaria hoje. Deve ter ficado uma menina linda. Perfeita. Penso se ela continuou na França ou se foi para Nova York, talvez tenha ido para a Inglaterra, que tinha mais a ver com ela. Penso se ela chegou a realizar seus sonhos...
Nunca permiti que alguém quebrasse a barreira que eu criei. Ninguém derrubaria o meu copo azul no chão. Porque é vidro. Vidro quebra. Eu não queria quebrar mais copos azuis. De vez em quando eu ainda ouço a voz doce da Irmã Pauline brigando comigo por eu ter jogado o copo no chão e consigo sorrir.
Pois foi quando eu aprendi que qualquer coisa pode ser remendada, mas você sempre vai sentir as marcas de algo que não é mais inteiro, completo. Marie com certeza conseguiu consertar o coração dela, mas ela com certeza não deixou que mais ninguém o segurasse. E eu jamais deixaria que alguém segurasse o meu.
Todos podem ser a Jolie de cinco anos de idade. Todos podem jogar o copo azul de vidro no chão de propósito mesmo sabendo que vai quebrar.
E toda noite antes de dormir, eu bebo água naquele copo. Tento cuidar dele para que não caia novamente, eu não conseguiria juntar os pedaços sem a ajuda da Irmã Pauline.

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