quinta-feira, 16 de maio de 2013

Reminiscências de Sylwia, a Sala Suicida


Me chamo Sylwia. O sobrenome não importa, nunca importou e não vai ser agora que vai importar. Costumava me identificar, antigamente, como "Sala Suicida". O apelido não era apenas uma apologia, era um desejo, que depois se tornou uma decisão e hoje é apenas um pesado fardo que carrego junto com uma promessa muda que precisei fazer; eu prometi que iria viver.
Há alguns anos conheci um garoto que se chamava Dominik. Dominik Santorski. Por alguma razão, na realidade onde ele vivia antes de me conhecer, sobrenomes eram uma coisa que importava e muito. Dominik me mostrou um lado diferente da vida, um lado onde ainda havia esperança de melhora. Dominik me tirou da escuridão em que eu me encontrava. E hoje, Dominik está morto. Alguns dizem que por minha causa, eu acredito que sim e eu não me orgulho disso. Mas às vezes também, gosto de pensar que eu fui a sua coragem. Ele não era uma pessoa feliz, eu não sou também, quando nós dois nos encontramos, as nossas infelicidades fundiram-se no que eu consegui até hoje chegar mais perto de um relacionamento. 
Antes de conhecer o Dominik, três anos antes eu resolvi que não precisaria mais mostrar a minha cara ao mundo. Meus pais tentaram de toda a forma me tirar de lá, durante umas duas semanas, mas depois, com o tempo eles apenas acostumaram-se ou conformaram-se com a ideia de que eu não iria sair de lá. E o que mais eles poderiam fazer por mim? Me bater? Me matar? Seria até melhor, era tudo que eu esperava que me acontecesse naquela época. Eu tinha um computador, eu não precisava de outra coisa. Tudo o que me era necessário, eu podia encontrar dentro de mim mesma, era isso que eu repetia na minha cabeça constantemente, porém eu estava tão vazia que tudo que eu encontrava lá dentro era um desejo constante de abandonar esse mundo. Esse mundo sujo, sem amor, sem respeito. Esse ar sujo que me sufocava a cada segundo. 
De certa forma, o que eu queria era escapar. Dominik me deu isso.
Eu via nele um espelho até muito fiel do que eu fui um dia, eu tive uma vida antes de decidir que o meu quarto seria o único espaço do mundo onde eu estaria realmente segura e que eu mesma seria a melhor companhia que poderia ter. A escola foi um inferno no meu tempo, eu não suportava as pessoas lá. Os sobrenomes que importavam, os carros que importavam ainda mais. A aparência das garotas, todas iguais. Os bailes, os garotos, as garotas, as notas. Tudo naquela realidade me deixava absolutamente enjoada. A minha própria família me deixava enjoada. 
Às vezes a gente acerta um ponto na vida que pouca gente conhece, somos pessoas especiais, pessoas que possuem a habilidade de acertar esse ponto e perceber que a vida não passa de podridão e hipocrisia. A maioria das pessoas não acerta esse ponto porque se conforma, mas eu... Eu nunca me conformei. Eu ainda penso em suicídio, a Sala Suicida ainda vive em mim, ela nunca vai deixar de estar lá. Mas eu não posso morrer. Eu não posso morrer, porque Dominik queria viver. E Dominik morreu, a única coisa decente que eu posso fazer pra dizer que a minha vida teve algum sentido é viver, viver por ele. Nos chamamos hoje, eu e algumas outras pessoas que antigamente comandavam a Sala do Suicídio comigo de "Sobreviventes do Suicídio". Para eles é uma piada, eles encontraram a graça da vida, encontraram razões para não querer mais morrer. Eu continuo esperando silenciosamente o meu momento, eu apenas não posso acelerá-lo. Eu sei que Dominik entenderia, ele sempre entendeu.
Tem dias que é insuportável pensar nele, eu ainda mantenho a minha conta na Sala do Suicídio, eu entro lá, caminho pela nossa árvore de fogo, a que ele fez especialmente para mim. Gosto de fazer isso à noite, porque no céu tem uma porção de estrelas, a paisagem também havia sido escolhida por ele. Eu ainda lembro quando ele sumiu, ainda lembro a raiva que eu senti por ele não ter atendido ao meu último pedido, a raiva que senti quando não o encontrei no bar. Eu lembro tudo que eu queria lhe dizer quando ele aparecesse novamente, mas os dias foram passando e eu não tinha notícias. E eu não entendia, mas eu não podia morrer antes de falar uma última vez com ele. Então ele apareceu, da forma como nós nos encontrávamos sempre, no jogo. Todos estavam lá, todas as pessoas que nós considerávamos como nossa família. Porém, não era ele, ele estava diferente.
Eu me chamo Beata Santorska. Sou a mãe do Dominik. Aquelas palavras nunca saíram da minha cabeça. Mas eu esperava que ela dissesse apenas que o Dominik havia fugido de casa ou que ela desejasse me dar uma bronca, esperava que ele tivesse sido descoberto. Mas não, não era nada disso. A mulher me agradeceu e depois, chorando, me disse as únicas palavras que eu jamais desejei ouvir na minha vida e muito menos no fim dela. O Dominik está morto. Ele cometeu suicídio há algum tempo. 
O insuportável é pensar que aquilo foi minha culpa. Eu o fiz conseguir os comprimidos, eu quis que ele me encontrasse naquele bar. Mas eu não sei porque ele esperou que eu estivesse lá três dias depois do que combinamos. Bom, eu também havia perdido a noção do tempo quando me isolei, talvez ele tivesse alguma esperança até o momento.
Eu sei que eu não fui a culpada pela morte dele, não sou assassina e eu sempre disse a ele que ele deveria viver. Era eu quem queria morrer, era eu quem deveria estar morta. Porém, às vezes eu penso novamente e a única coisa que eu gostaria hoje, não é a morte, a única coisa que eu gostaria hoje era ter encontrado o Dominik naquela noite, dançado com ele, abraçado, beijado e nunca ter deixado ele ir. Às vezes me passa pela cabeça que se nós tivéssemos nos encontrado, eu poderia tê-lo salvo, da mesma forma como ele me salvou. 
Hoje eu vivo, eu vivo por Dominik. A minha vida é emprestada. Eu tento não ficar no quarto o tempo todo, mais. O estranho disso tudo, é porque o meu quarto é o lugar onde eu mais lembro do Dominik, mesmo sabendo que ele nunca esteve lá. Mas aí eu penso melhor e ele esteve. Ele esteve comigo por muitas vezes lá, ele até dormiu lá comigo. 
Eu não acredito em destino ou nessas coisas que as pessoas gostam de usar para justificar atos e consequências, mas de vez em quando, tento me enganar dizendo que o que aconteceu, apenas aconteceu porque assim deveria ter sido, que aconteceu como estava para acontecer. 
Um pouco de mim, e não me considero nenhum monstro por pensar isso, eu o conhecia melhor do que qualquer outra pessoa, para poder afirmar, mas esse pouco de mim às vezes acredita que Dominik não estaria feliz se tivesse ficado. Aqueles porcos acabaram com a vida dele na época do colégio. Os mesmos porcos que também acabaram com a minha. Os mesmos, porque para mim, as pessoas lá fora, na realidade, elas são todas iguais, todas podres por dentro. Por mais que não sejam as mesmas pessoas, elas são todas iguais. 
Dominik e eu éramos especiais, porque éramos diferentes. Eu ainda sou, mas vejo a mim mesma depois de tudo aquilo que aconteceu, apenas como um eco, uma sombra. O que eu fui, ficou lá. O que eu fui, morreu junto com ele. Estou aqui apenas cumprindo uma promessa que eu nunca fiz, mas me sinto obrigada a não quebrar. As poucas pessoas que partilharam conosco a Sala do Suicídio, elas eram diferentes também, eram todas especiais. Elas se curaram, algumas, acredito eu, hoje passam absolutamente despercebidas no meio dos outros, são sombras como eu e ninguém imagina que um dia elas quiseram acabar com as próprias vidas. Elas ainda não pertencem a este mundo, eu também não pertenço.
A espera é cruel, antes eu me agarrava na esperança que eu tinha de encontrar alguém que pudesse me levar embora. Às vezes eu também me permito sentir raiva do Dominik, eu penso que ele foi egoísta, que ele tinha que ao menos ter me levado junto com ele. Mas eu me sinto culpada quando começo a pensar desse modo. Acho que a única coisa que eu queria de verdade era ter ficado junto dele, era tê-lo encontrado no tempo certo. 
Eu não sei mais quanto tempo eu vou aguentar. Acredito que eu ainda vá acabar quebrando a minha promessa qualquer dia desses, mas por enquanto eu ainda não posso. Ser forte era o que eu sempre tentava colocar na cabeça do Dominik. Eu lembro como eu me senti orgulhosa quando ele enfrentou aqueles porcos da sala dele no colégio. Ele realmente se mostrou um grande herói. No final das contas, era isso mesmo que ele era, um herói. O meu herói em uma armadura brilhante, que salvou a minha vida, que deu a sua própria vida em troca da minha.  E com isso, ser forte é a única coisa que me resta ser.
Eu sou forte por Dominik. E Dominik também foi forte por mim. 
Nós ainda somos a Sala do Suicídio. Eu ainda sou a Sala Suicida.

Nenhum comentário:

Postar um comentário