sexta-feira, 10 de maio de 2013

Possibilidades Impossíveis



"Existe essa pergunta muito antiga, mas pouco questionada, ninguém pensa sobre isso, ninguém pensa sobre o destino ou esse capricho sem nome em que somos encaixados. Existem algumas situações em que se costuma dizer que estávamos no lugar certo na hora certa. Mas hoje eu me pergunto: estamos de fato no lugar certo na hora certa ou no lugar errado na hora errada?"

Não era dia do meu plantão naquela noite, em dois anos e meio trabalhando naquele hospital, meus horários sempre seguiram uma disciplina linear, dias de trabalho, folgas, em dois anos e meio, nunca aconteceu aquilo. Eu lembro que naquele dia chovia muito e uma das enfermeiras não apareceu. Ela simplesmente não apareceu, não avisou, nada. Normalmente, teriam pedido para alguma das mais experientes para assumir a sua posição, mas acho que tudo aquilo aconteceu rápido demais para que elas pudessem manter alguma organização. Alguma das minhas colegas de trabalho, isso eu curiosamente não lembro com detalhes, não sei se foi Susie ou Anne, talvez não tenha sido nenhuma das duas, lembro apenas de alguém correndo até mim já com os trajes próprios para que eu pudesse entrar no centro cirúrgico. Eu tinha um pouco de pavor de entrar naquele lugar, eu não gostava, a minha função não era aquela, mas eu não podia simplesmente dizer que não iria e pronto, acima de tudo, lá estava uma pessoa precisando de cuidados.
Era um parto. Eu fiquei um pouco mais aliviada quando soube que era isso, pois eram as cirurgias complicadas que me davam arrepios só de pensar. Um parto, o que tinha de mais em um parto? Era apenas uma vida vindo conhecer o mundo. Eu senti pena pela criança, eu sempre sinto pena quando alguma nova criança nasce, acho que se elas pudessem escolher ou se soubessem como realmente é aqui fora, jamais iriam querer sair. Aliás, elas jamais iriam querer descer.
Eu me troquei o mais rápido que pude, me higienizei e corri para o centro cirúrgico. Eu descobri que a minha função lá não seria nada mais do que acalmar a nova mãe, que estava gritando muito. Eu não era muito boa com essas coisas, mas respirei fundo e tentei colocar em mim a melhor expressão de segurança, apenas para aquela mulher que estava precisando no momento.
Ela estava, de fato, gritando bastante quando cheguei lá. Eu olhei para o rosto da mulher, que na verdade passaria fácil por uma menina, tinha uns traços delicados, apesar de serem firmes. E a sensação de que eu já tinha visto aquele rosto em algum lugar era tão grande que chegava a me incomodar. Eu segurei a mão dela, enquanto tentava estabilizá-la com um pano umedecido em sua testa e rosto, ela apertou tão forte a minha mão que se não estivesse tão fraca, creio que ela teria conseguido quebrar alguns dos meus ossos. Tentei lhe dizer que estava ali, que ela poderia confiar na equipe, mas ela deveria estar sentindo muita dor - e não era pra menos -, mas a verdade é que além do que eu já falava, não tinha muita coisa que eu pudesse dizer para confortá-la. Eu apenas apertei sua mão com força e pensei em cantar para ela, talvez fosse uma boa coisa a se fazer. Comecei apenas a murmurar algo, no início nem eu mesma tinha certeza do que era, mas depois a minha melodia baixinha foi tomando forma, naquele mesmo instante, ela pareceu se acalmar subitamente. Continuei murmurando aquela canção para ela e tentando incentivá-la a se esforçar e empurrar, até que estivesse tudo acabado. Depois de um pouco mais de esforço e de tempo, logo todos pudemos ouvir aquele chorinho confortador.

O brilho nos olhos dela quando recebeu a criança em seus braços - era uma menina - fez o meu próprio coração se aquecer. E eu nem sabia qual era o nome daquela jovem, apenas sentia que lá no fundo ela já havia passado pela minha vida, há muito, muito tempo, mas eu não podia me lembrar. Eu saí da sala de cirurgia antes de todos os meus colegas, não conseguia ficar lá por muito tempo e, como não estava acostumada, era tanto um choque para a mãe receber a filha em seus braços, quanto era para mim ter sido responsável por tranquilizar a paciente.

— x —

"Você fez um ótimo trabalho lá, Al." O próprio Doutor responsável pelo parto veio me congratular, ainda me lembro de ouvi-lo dizer que nunca ninguém havia acalmado uma de suas pacientes tão bem quanto eu havia conseguido. Às vezes, quando me lembro disso, me dá uma pequena pontinha de saudades daquela profissão.

— x —

A minha vida poderia ter seguido um rumo tranquilo, eu havia ajudado um dos médicos mais atenciosos daquele plantão, havia mesmo indiretamente, ajudado a trazer uma vida ao mundo e tudo estava bem. Mas foi o dia seguinte que veio como um absoluto choque, um tapa violento na minha cara, que mesmo invisível deixou marcas que ficaram presas por baixo da minha pele, de um modo que eu nunca pude removê-las.

"Alexia, tem alguém que quer ver você." Dessa frase eu lembro perfeitamente e tanto quanto, me lembro de ter sido dita por Anne. Talvez tenha sido Anne que me arrastou para o centro cirúrgico naquela noite, também.

Eu fui mandada até o quarto da paciente que eu havia acalmado, porque ela gostaria de me agradecer pelo que eu fiz por ela. Curioso mesmo era o fato de ninguém sequer se importar em me dizer o seu nome, mas suponho que eles acreditassem que era a minha obrigação saber.
Quando eu cheguei no quarto, a enfermeira já estava levando o bebê para fora do leito e a mãe estava cobrindo um de seus seios, quando ela me viu entrar, sorriu. Aquele sorriso, por que eu não reconheci antes? Eu poderia ter evitado aquilo.

"Disseram que queria me ver." Eu disse e parei perto da cama, constrangida era a palavra para me descrever naquele momento.
"Senta." Ela deu um tapinha fraco perto de si e eu me sentei na beira da cama. Ela me olhou e pude jurar que ela também sentiu aquilo que eu senti ao vê-la, aquela mesma sensação de reconhecimento. Nos encaramos assim por algum tempo, até que ela quebrasse o silêncio. Posso dizer que ela se incomodou com aquilo. "Eu gostaria de te agradecer por... Erm... Pelo que fez por mim, lá. Sabe..."
"Eu estava apenas fazendo o meu trabalho, você não precisava se--"
"Você cantou algo pra mim, algo que só cantaram uma vez em toda a minha vida... Era como se você soubesse-", ela tossiu, antes de continuar. "Como se você soubesse que aquela era a única música que poderia me acalmar. Deus... O que eu estou dizendo? Eu nem deveria estar pensando nessas coisas..."
"Eu não sei porque eu pensei naquela música, exatamente naquela." Eu estava sendo sincera, até aquele momento, eu realmente não sabia. "Pensei que poderia ajudar... Eu--eu não sei. Senti, senti que poderia servir."
"Era... Yellow. Reconheceria aquele tom em qualquer lugar do mundo. Me diga, qual é o seu nome?"
Eu jamais esqueci aquele momento.
"Al... Alexia."

Os olhos dela cresceram um pouco e ela levou as duas mãos até os lábios, cobrindo-os. Pensei que fosse ter um ataque ali, o que fez eu me levantar muito rápido. Pude perceber que logo depois do choque, lágrimas começaram a descer pelo rosto dela. Nunca resisti ao que uma mulher chorando podia fazer comigo, então no lugar de recuar, eu me voltei para ela e a abracei. Ela me apertou muito forte contra os seus braços, mas soluçava de forma incontrolável, ficou assim por algum tempo até começar a se acalmar e dizer algo que eu não compreendi em meio aos seus soluços.

"Em... Emily." Foi o que ouvi ela dizer, quando nos separamos, as duas mãos dela esfregando os próprios olhos e o rosto e aqueles olhos grandes fixados em mim.

Era ela.

A situação esquisita aqui, foi o fato de nós não termos nos reconhecido, porém ao mesmo tempo, não teria como. Eu estava muito diferente do que ela havia conhecido de mim, nós éramos adolescentes, em nossos 16 anos quando vivemos a nossa história. Eu, porém, nunca esqueci aquela menina. A menina que foi o amor da minha vida. Porém o rosto dela ficou gravado na minha memória de uma maneira ainda mais jovem e pela minha vida, depois que me mudei, sempre via mulheres pela rua que se pareciam com ela, cruzava por aí com elas e abaixava a cabeça, pensando que qualquer uma delas poderia ser ela e que ela não se lembraria de mim. Eu também comecei a chorar, mas até mesmo pela minha profissão, eu conseguia conter isso muito melhor.

Eu não consegui abrir a boca pra dizer nada e nunca vou saber se ela tinha mais alguma coisa para me dizer, eu dei um passo e fiquei na frente dela, coloquei alguns dos seus cabelos atrás de sua orelha e sorri fraquinho, um beijo na testa, foi a única coisa que eu pude deixar nela. A porta do quarto se abriu e entrou por ali um homem loiro, bonito, parecia simpático, mas carregava consigo um semblante preocupado que adquiriu provavelmente ao ver a mulher naquele estado. Eu havia me separado dela antes que ele entrasse no quarto, ele veio direto na direção dela e beijou-lhe a face, a testa, os olhos e a boca, só percebeu que eu estava ali depois de dar toda a atenção que sua mulher merecia.
Nada mais foi dito.

Eu olhei para ela uma última vez, sorri fraco e saí do quarto. Pedi demissão da clínica no mesmo dia, passei pelo berçário, observei a filha de Emily por algum tempo antes de ir embora, dei a volta pelo outro lado do estacionamento quando vi o marido dela vindo na direção onde eu estava e essa foi a última vez que eu soube sobre Emily.
Eu fugi, larguei aquela profissão, mudei de cidade. Quando jovem, havia largado o curso uma vez e depois resolvi voltar, por dois anos e meio exerci aquilo como uma paixão, por mais que não gostasse tanto do que fazia. Mas Emily sempre aparecia em algum ponto da minha vida e eu havia aprendido a correr dela, a correr dos pontos no tempo onde as nossas vidas se cruzavam.

Eu não sei se eu estive no lugar certo na hora exata, ou se não havia momento pior para eu estar presente, naquele dia. Às vezes penso se aquela vida era a vida que nós teríamos formado, eu, ela, uma bela garotinha. Mas depois eu penso melhor, a vida que Emily queria era muito diferente da vida que eu poderia lhe oferecer. Me pergunto todos os dias como estão ela e a menina, mas não me atrevo a procurar notícias, não me atrevo tentar encontrá-las.

Aquela página que eu havia arrancado poderia até voltar algumas vezes, pela caixa de correio ou pelos ventos que a traziam de alguma forma, mas eu não podia ignorar o fato de que era definitivamente uma página arrancada que não poderia ser fixada novamente no meu livro.

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